Linha da Beira Alta: um sorriso no regresso a casa

O autocarro começa a movimentar-se. Rapidamente deixa Coimbra para trás, parece-me que demasiado depressa. No autocarro, somos seis passageiros, cinco septuagenários.

Foto
"Entre os bancos, vejo a cabeça do senhor da cânula nasal e perna postiça tombar para a direita" João da Silva
Ouça este artigo
00:00
04:20

A Dona Rosa avança devagar pelo corredor. Tem uma mochila ao ombro e puxa um trolley. Pergunto-lhe se quer ajuda. Não responde. Talvez não tenha ouvido, ou ouviu e não quer ajuda nem dar conversa. Mais dois ou três passos e estaca junto à saída, a olhar para o precipício. “É alto, o comboio. Posso ajudar?”, repito. “Agradeço. É uma sorte haver sempre alguém para ajudar”, responde, séria, triste, pesada. Desço o trolley, pesado como chumbo, para a plataforma e despeço-me com um sorriso não retribuído.

“Nunca mais acabam estas obras. É um transtorno sempre que vou a Lisboa, a casa da minha filha. Então, não é tão bom ter o comboio até à porta de casa?”, atira a dona Rosa, que também se dirige ao transbordo rodoviário. “Pois…”, respondo, com um sorriso (não retribuído), e entro no autocarro.

Sento-me no lugar imediatamente a seguir à porta traseira. É mais desafogado, só tem um ferro baixo, e não assentos a tapar a vista dianteira. Já sem mochila e sem trolley, a dona Rosa caminha ligeira pelo corredor. “Vamos lá à última etapa, é que é cá um castigo esta coisa do autocarro”, reclama. “Vá lá, que é só uma horita”, respondo para aligeirar, sorrindo, já sem esperança na retribuição. “Não, que eu ainda tenho de apanhar um táxi em Mangualde e depois é mais um quarto de hora até casa”, acrescenta. Não comento, mas sorrio, já embalado pelo sol. Sinto as pálpebras pesadas. Fecho os olhos.

“Deixa-me sentar aí?” Abro os olhos e vejo um senhor na casa dos 70, com uma cânula nasal e uma maleta a tiracolo. “Não tenho uma perna, só consigo ir nesse lugar”, diz-me, sorridente. “Claro”, respondo, levantando-me rapidamente. Sento-me dois lugares atrás e volto a fechar os olhos. “O senhor tem apenas uma perna e precisa de uma botija de oxigénio para respirar direito, enquanto eu reclamei do transbordo quando comprei o bilhete. Eu, que respiro perfeitamente bem e sou apenas um turista por estas bandas.”

O autocarro começa a movimentar-se. Rapidamente deixa Coimbra para trás, parece-me que demasiado depressa. No autocarro, somos seis passageiros, cinco septuagenários.

“É preciso fazer a obra, isso ninguém discute, mas também podiam pensar nos velhos, não é?”, atira a dona Rosa. “A gente vai morrendo aqui nisto. Vou ver a minha filha e os netos, estou lá bem, mas depois aqui tenho a horta e o gato e as minhas coisas, a minha casinha, não é, e quero voltar. Mas é só mesmo pelas coisas que volto. Em casa dela, estava melhor, mas também sinto que incomodo um bocado, não é? Ela é minha filha, mas sei que incomodo. E depois é o genro, os feitios, e os miúdos que não param. Por isso é que digo que estou bem é na minha casinha”, acrescenta.

Entre os bancos, vejo a cabeça do senhor da cânula nasal e perna postiça tombar para a direita. Temo que ele possa cair para o corredor nestas curvas e contracurvas. O senhor permanece assim durante algum tempo, até que uma forte travagem o desperta. A mim, continua a parecer-me que o autocarro vai demasiado depressa. E, no IP3, todos os cuidados são poucos. O condutor vai a conversar com o passageiro que ocupa o primeiro lugar da primeira fila do lado direito. Não é lugar para conversas, digo eu, que costumo passar por aqui a conduzir a uma velocidade muito inferior. E num automóvel ligeiro.

“Mas a gente sente-se sozinha, não é? Com a filha longe, ainda por cima é filha única…”, prossegue a dona Rosa, que fala agora com a cabeça voltada para trás. Noto-lhe os olhos humedecidos e sinto-me piegas, desarmado. “Pois…”, murmuro, sem sorrir e sem saber o que dizer mais. Limito-me a olhá-la nos olhos e a ouvi-la. Fala-me das recordações de infância; do marido que partiu há muito e que foi o único homem que amou além do pai; dos primeiros anos de casamento, dos sonhos construídos a dois, depois a três; os passeios… Os olhos iluminam-se e, por fim, um sorriso.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

Sugerir correcção
Ler 2 comentários