A receita da minha… mãe: pescar as trutas para o almoço no poço da quinta

Em 2022, Catarina Nascimento abriu, com Diogo Sousa, o 83 Gastrobar, em Chaves — cozinha com identidade, ligada ao território e ao mundo. As trutas que a mãe dela preparava são parte da história.

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Catarina Nascimento Paulo Pimenta
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Era um luxo. Apesar de estar longe do mar, e até do rio, Catarina Nascimento tinha peixes no meio da quinta dos avós, em Chaves. A história das trutas começa com os bisavós da chef do 83 Gastrobar, restaurante que abriu em 2022 naquela cidade: “O meu bisavô materno tinha o hobby de ir à pesca para Boticas. Trazia trutas e pedia à minha bisavó para as preparar.”

Catarina não conviveu muito com os bisavós, mas conhece bem a história e sabe que “havia várias receitas de trutas”. O que já é uma memória pessoal é a das trutas na quinta. “Tínhamos um poço grande com água corrente. Um dia, o meu pai trouxe trutas para ali e elas foram-se reproduzindo”, recorda. O luxo era esse: “Podíamos pescar trutas na nossa própria casa.”

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Volta e meia ficavam sem ideias e perguntavam: “O que é que havemos de fazer para o almoço?”. Alguém se lembrava das trutas e estava o problema resolvido: “Vamos ali pescar uma ao fundo do poço.” A mãe limpava-as bem e recheava-as “com presunto do bom”, e quando iam a assar ganhavam todo esse sabor.

“[Ainda hoje] aqui em Chaves é difícil encontrar trutas”, por isso o almoço da família de Catarina não era certamente muito habitual. Mas a memória ficou e no 83 a chef, que trabalhou vários anos em Espanha, no DiverXO de Dabiz Muñoz (3 estrelas Michelin), já serviu um petisco inspirado nela.

Quando abriu, com o algarvio Diogo Sousa, um gastrobar em Chaves, Catarina sabia que estavam a lançar-se num desafio que tanto podia correr bem como mal. Apesar de ter estado fora muitos anos, conhecia bem a sua terra natal e tinha consciência de como as pessoas podiam ser conservadoras no que diz respeito à gastronomia. “Podiam vir e dizer: ‘A rapariga é maluca, não volto lá...’.”

Foi, por isso, com alguma cautela que “logo no primeiro ou no segundo menu” apresentou um ssam de truta — um prato de origem coreana em que um ingrediente aparece enrolado noutro. Neste caso, havia uma folha de alface a servir de base, uma salada de batata fria, um puré de batata-doce, um escabeche e, por cima, lasquinhas de truta polvilhadas com um pó de presunto. “Pensei que ia haver torcidelas de nariz, mas foi um prato que brilhou e que ainda hoje, passadas nove cartas, se mantém na memória das pessoas.”

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Catarina com a mãe DR

Foi assim, a pouco e pouco, que continuaram a arriscar. “Lembro-me que fizemos uma sobremesa de morangos com natas com uma espuma de kimchi [fermentado coreano].” E ninguém se foi embora a dizer que “a rapariga é maluca”. O que pretendem no 83 é, acima de tudo, “pegar em produtos tradicionais e tratá-los de forma mais moderna”, explica Catarina. “Fala-se tanto em sustentabilidade. O melhor é praticá-la.”

As influências podem vir de muitos lados. “São as nossas vivências, costumes, hábitos.” Mesmo sem ter viajado muito pela Ásia, Catarina trabalhou “com um senhor [Dabiz Muñoz] cuja cozinha reflecte muito isso” e, portanto, traz essas marcas para o 83 sempre que sente que faz sentido.

Podem, sem complexos, misturar, por exemplo, como acontece na nova carta, uns cuscos de Vinhais com um tempero de arroz algarvio, com limão, coentros e algas. “Têm sabor a mar, mas não deixam de ser cuscos de Vinhais.”

“Temos coisas incríveis em Portugal, devíamos valorizá-las mais e não o fazemos”, lamenta. “Queremos todos ir atrás do mesmo prémio e assim perde-se a identidade, ficamos todos iguais. Temos de viver mais o território, isso é muito importante para nós enquanto país que se quer vender como potência gastronómica.” E as trutas no poço do quintal fazem parte desta história, desta identidade.

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