Onde é que já se viu uma alentejana a narrar futebol?
Sobre o texto “Ida Maria gritou golo antes do tempo – ela foi a nossa Jacqui Oatley”, da autoria de Inês Nadais, publicado no P2 de 19 de Maio de 2007.
Em 2007, uma mulher foi, pela primeira vez, a voz de um jogo de futebol da Premier League na BBC. A notícia já seria bafienta se tivesse sido publicada nos anos 1990, mas é difícil explicar como é que uma mulher só deu voz a uma partida depois de “apenas” 70 anos de sucessivos homens a narrar jogos na emissora pública britânica. Falam mal das listas de espera no Serviço Nacional de Saúde, mas a BBC deixou as mulheres sete décadas à espera de terem voz na narração de jogos de futebol.
Percebo as preocupações de algumas pessoas revoltadíssimas com a presença de Jacqui Oatley a narrar um Fulham-Blackburn Rovers na BBC. Se fosse em Portugal, de certeza que a mulher se esqueceria de que estava a narrar um jogo e passaria uma boa parte do tempo a falar da estreia da “imperdível” novela A Promessa. Ou então a falar de mais um episódio adjectivado entre o “explosivo” e o “bombástico” de um qualquer programa de casais que contraem matrimónio sem se conhecerem previamente de lado algum, numa “experiência social” com uma elevada probabilidade de permitir a experimentação de um divórcio no último episódio.
Reparem num dos comentários que se leram em 2007 sobre a primeira mulher a narrar futebol na BBC: “Surpreendente: nada de comentários sobre as pernas dos jogadores ou sobre como tirar nódoas de relva na roupa de nylon.” Cá está um espectador que não acreditava muito nisto de as mulheres poderem narrar futebol. Outros foram mais arrogantes e mudaram de canal: a “sirene dos bombeiros” era “um insulto aos históricos da narração desportiva”, escreviam.
Não se preocupem, em Portugal só tivemos de esperar mais 13 anos pela “novidade” que era ter uma mulher a narrar um jogo da primeira divisão na televisão. E o pior desta experiência é que ela, contra todas as expectativas das más-línguas, não passou o jogo a autopromover a restante programação do canal ou a fazer comentários que nada acrescentam ao jogo. Foi Rita Latas, na SportTV, com um jogo do B-SAD contra o Sporting de Braga, em 2020. Mas a história mostra que há uma mulher que, ainda em ditadura, deu voz à bola na rádio: Ida Maria estreou-se num Sporting-Académica nos microfones da Emissora Nacional.
Locutora histórica da emissora pública, Ida Maria teve a sorte de ter um chefe com bom senso que percebeu o gosto que ela tinha pelo futebol. Mas a experiência não durou muito tempo, e a locutora só faz mais “uns dois ou três relatos”: “houve um jornal que me deu da cabeça aos pés, mas o público reagiu o melhor possível”; já dentro da rádio houve quem não sossegasse enquanto não voltasse a meter a locutora “no sítio dela”. A principal queixa – ou será medo das diferenças? – é a de que o grito de golo de uma mulher “é mais agudo, mais agreste – menos audível”.
Hoje, as mulheres estão cada vez mais presentes no jornalismo desportivo, sendo também presença frequente em programas de comentário. O mundo demorou a mudar, mas mudou. Mas ainda há quem não tenha percebido: em 2019, Rita Latas ouviu do então treinador do Benfica, Jorge Jesus, um misógino “é natural que você não saiba o que é muita qualidade de jogo”, depois da então jornalista ter questionado o treinador sobre a pouca qualidade de jogo da sua equipa.
Melhor o título da edição online da rádio Campanário, com centro emissor em Vila Viçosa: “Rita Latas faz história como primeira mulher e alentejana a narrar um jogo da 1.ª Liga de Futebol.” Uma mulher a dar voz ao futebol, tudo bem, mas agora onde é que já se viu um alentejano a narrar futebol? Modernices a que uma pessoa tem de estar sujeita em pleno século XXI.
O P2 Verão mergulha no arquivo do PÚBLICO para recordar histórias de outros tempos.