Maria Francisca Gama: “Não queria estar nas redes sociais por receio não dos leitores, mas de outros escritores”

Escreveu A Profeta e A Cicatriz, que tomou de assalto a Internet e que vai para a quarta edição. Não gosta que os leitores sofram com os seus livros, mas recusa-se a “embelezar a dor”.

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Maria Francisca Gama, autora d'A Cicatriz DANIEL ROCHA
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O último livro de Maria Francisca Gama está a pôr a Internet a chorar. Pelas redes sociais, multiplicam-se os leitores que não desistem enquanto não descobrem o que acontece à personagem principal d'A Cicatriz durante uma viagem com o namorado ao Rio de Janeiro. É uma história que se lê de uma só assentada, sobre amor, coragem, violência e sobre ser mulher. É dura e emocionante, daí que muitos tenham aderido à tendência de se filmarem a terminar as últimas páginas do livro — publicando depois esses vídeos no TikTok para incentivarem outros a partilhar a sua dor.

Maria Francisca Gama nasceu e cresceu em Leiria, filha de um pai professor de Educação Física e de uma mãe professora de Português e Francês, rodeada de livros e com visitas semanais à biblioteca municipal. Sempre soube que queria ser escritora — publicou dois livros infanto-juvenis aos 14 e aos 17 anos —, mas, como Portugal "não é um país onde se possa afirmar com muita certeza que se vai viver da escrita", seguiu pelo plano B.

Licenciou-se em Direito e trabalhou num escritório de advogados durante dois anos, mas não parou de escrever. Nasceria então A Profeta, publicado em 2022 pela Suma de Letras, chancela da Penguin Random House, e Maria Francisca disse adeus ao escritório para se dedicar a 100% à escrita, "nas suas mais variadas vertentes".

Aos 26 anos, faz parte de um grupo de escritoras portuguesas que está a fazer por abrir as portas, às vezes "ao pontapé", do mercado editorial para jovens (principalmente mulheres). Uma aficionada por literatura em português (de Portugal e do Brasil) perde-se em livros de ficção contemporânea, aquilo a que por aqui chamamos romance, mas que, pelo menos no caso das leituras de Maria Francisca, "nunca são histórias de amor". Conta que, para quem sempre foi leitor, é "um bocadinho inevitável" querer construir as próprias histórias e ser lido pelos outros.

Desde que publicou A Cicatriz, aprendeu que se sente mais confortável a escrever de um lugar de tristeza, e que um livro não perde o mérito por ser popular nas redes sociais. "Pus de lado algum preconceito e snobismo meu de não querer estar nas redes sociais, por receio não dos leitores, mas sim de outros escritores. Tinha medo que achassem que o meu trabalho era menos válido por causa disso. A verdade é que essa validação não traz comida para a mesa", diz.

As personagens principais de A Cicatriz são uma "ela" e um "ele". Porque decidiste não lhes dar nome?
Foi propositado e é uma característica muito importante da história porque permite que o leitor substitua o pronome pessoal pelo nome de alguém que conhece. Acho que quando escolhemos um nome atribuímos idade e características físicas a uma personagem e permitimos que o leitor se distancie da tragédia, é inevitável. Quis manter os pronomes para que o leitor pudesse perceber que aquilo podia ser sobre qualquer pessoa. A partir do momento em que o livro se transforma numa confissão prolongada à família e aos amigos daquilo pelo qual a personagem principal passou, qualquer utilização da terceira pessoa ao invés da primeira diminuiria o tom confessional que acho que era obrigatório nesta história.

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Como funciona o teu processo criativo? Há algum método que utilizes sempre?
A Profeta surgiu com a construção da personagem primeiro. Queria criar a história de uma mulher forte, com características dúbias, para quem o leitor olha e não consegue dizer se é uma personagem boa ou má. Acho esse conceito muito interessante na arte, na vida já não sei. Por outro lado, n'A Cicatriz, o local surgiu antes das personagens. Quando comecei a escrever A Cicatriz não sabia que história ia contar. Sabia que queria escrever algo que se passasse no Rio de Janeiro porque tinha regressado de uma viagem, estava encantada e queria prolongar aquilo que tinha vivido a nível sensorial tanto tempo quanto fosse possível, e um livro é uma óptima maneira de prolongar coisas. Comecei a escrever as partes mais descritivas, aquilo que se cheira, que se vê, que se sente ao estar nessa cidade.

Como é que de um tom tão positivo como o que descreves saltas para um tema tão negro como o da violência sexual?
Acima de tudo foi baseado no meu medo e das minhas amigas. Acho que a maior parte das mulheres vai identificar-se com esta sombra que nos persegue constantemente, com este receio de sermos escolhidas. Quando decidi escrever sobre aquilo que escrevi tive a certeza que o queria fazer da forma mais crua possível. E, ao contrário daquilo que possa eventualmente pensar-se, não foi com o intuito de chocar o leitor e de o fazer chorar. Não gosto particularmente que as pessoas sofram muito com o meu trabalho.

Qualquer coisa que fosse menos do que o que escrevi, tanto a nível de pormenor como de linguagem mais áspera, mais dura, seria a continuação de uma forma de arte que ao longo dos anos tem desculpabilizado e menorizado as atitudes dos homens e as suas consequências na vida das mulheres. Um homem que leia A Cicatriz e que se depara com essas descrições tão cruas, com a linguagem tão visceral, é um homem que está consciente daquilo que pode provocar numa mulher.

Receio que, por vezes, pelo medo de ferir a susceptibilidade dos espectadores, dos leitores, se embeleze a dor e acho que não o fiz. Essas descrições também foram fruto de trabalho de pesquisa da minha parte. Li testemunhos de mulheres que foram violentadas e também de de agressores. Foi nessa simbiose infelizmente perfeita de quem sofre e de quem faz sofrer que as descrições surgiram.

Tens contacto com mulheres que passaram pelo mesmo que a personagem principal?
Recebo muitos, muitos testemunhos. É muito duro, mas fica-me mal dizê-lo porque é pior para as mulheres que o viveram. Fico muito lisonjeada que as pessoas confiem tanto em mim para partilharem memórias que a leitura deste livro lhes trouxe, muitas delas extremamente dolorosas.

Quando A Cicatriz saiu tive um momento de reflexão póstuma acerca do livro e do impacto que poderia causar em alguém que tivesse passado por algo semelhante. E tive receio que o livro pudesse entristecer ainda mais quem já está triste, principalmente por se identificar com a história da personagem principal. Mas estes últimos meses têm-me mostrado que as pessoas precisam de ler coisas semelhantes àquelas pelas quais passaram para se sentirem menos sozinhas e até para procurarem apoio psicológico. Alguns leitores já me disseram que o livro os ajudou a perceber que, tal como a personagem principal, também se estavam a isolar do mundo.

Quando estás a escrever pensas na forma como aquele livro vai ser recebido?
Actualmente o meu trabalho passa por me esforçar para não pensar no que é que os outros esperam, mas é inevitável. Quando escrevi A Cicatriz não esperava que fosse lido por tantas pessoas, receava que fosse um fracasso para mim como A Profeta tinha sido. Escrevi-o desprovida de qualquer expectativa e sem imaginar um leitor em particular e sem pensar em absolutamente ninguém que não nas personagens do livro. E tenho a certeza que o meu próximo livro será lido, se calhar, por algumas pessoas que leram A Cicatriz, mas depois também será lido por outros leitores O meu objectivo é construir sempre coisas diferentes, estou na idade de errar profissionalmente. Quero experimentar e a arte vive muito dessa experimentação.

A Cicatriz já está na quarta edição e foi a tua estratégia para as redes sociais que gerou parte deste sucesso...
Posso dizer que sim. Lancei A Profeta em 2022 e pouco depois percebi que o tempo médio de vida de um livro numa livraria é de cerca de dois meses, no máximo, e há dez ou quinze expositores de autores estrangeiros e um único para literatura lusófona. Os livros vão-se substituindo uns aos outros, a menos que estejamos a falar de autores que faz sentido estarem sempre expostos como Valter Hugo Mãe, João Tordo, Dulce Maria Cardoso, Isabela Figueiredo.

Quando és um autor português, a menos que o teu livro venda muito bem nas primeiras semanas, a probabilidade de passado um mês ires a uma livraria e encontrares o teu livro exposto, ainda que não esteja esgotado, é muito pequena. E foi isso que me aconteceu com A Profeta. Ninguém sabia que o livro existia. Uma coisa é o meu trabalho não ser apreciado, e com isso vou ter de lidar muitas vezes, outra, muito mais frustrante, é o meu trabalho ser desconhecido. Nunca quis ser mais nada na vida que não escritora e durante algum tempo tive dificuldade em apaziguar-me com a ideia de que teria de fazer uma coisa que ainda não via muito a acontecer em Portugal, que era estar nas redes sociais de forma mais activa.

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Criei um plano, pondo de lado também algum preconceito e snobismo meu de não querer estar nas redes sociais por receio não dos leitores, mas sim de outros escritores. Tinha medo que achassem que o meu trabalho era menos válido por causa disso. A verdade é que essa validação não traz comida para a mesa.

Começaste por partilhar as tuas leituras, certo?
Sim, comecei a partilhar muitas das minhas leituras no TikTok e é uma coisa que continuo a fazer porque algumas pessoas foram lendo os livros que recomendei e isso alegra-me muito. Um país leitor é um país mais evoluído e fico feliz de estar a viver num país que está a ficar mais evoluído com o tempo. Depois comecei a partilhar coisas relativas ao meu livro e não há comparação possível entre aquilo que me aconteceu há dois anos e agora. Claro que isso também se poderá dever à qualidade dos livros porque evoluí e acho que este livro é melhor que o anterior e será pior que o seguinte, mas está mais relacionado com o trabalho de divulgação que foi feito.

Na tua visão, o surgimento de comunidades como a do booktok traz uma mudança positiva para o mercado editorial?
Os jovens, na sua maioria, têm muita resistência àquilo que é obrigatório e muitos terminam o ensino secundário sem terem lido nenhuma das obras obrigatórias. O aparecimento de plataformas como o bookTok está a mostrar-lhes que para além dos autores que lhes foram apresentados nas escolas, há muitos outros que estão a passar, ou que passaram recentemente, por experiências semelhantes à deles.

A leitura será sempre um exercício de procura de nós próprios nas histórias, daí que os jovens se identifiquem muito mais com um livro escrito por um jovem do que com livros escritos por pessoas de 50 ou 60 anos, que têm experiência já distantes das deles. Muitos autores portugueses estão a escrever histórias que se passam em Portugal e isso acrescenta uma camada de identificação que fomenta muito a leitura. As coisas estão a mudar para melhor.

Foi uma montanha russa de emoções publicar o teu primeiro livro junto de uma grande editora?
Sabia que queria ver o meu livro publicado na Penguin, então enviei-o para o e-mail geral, que certamente recebe muitos manuscritos todos os dias. Não recebi resposta e acredito que nunca tenham chegado a ver o e-mail que enviei quando tinha 22 anos. A certa altura lembrei-me que conhecia o João Tordo. Quando era mais jovem venci um ou outro concurso literário promovido no ensino secundário a nível nacional e, por coincidência, todas as vezes que ganhei foi ele que me entregou o prémio. Enviei-lhe A Profeta com o simples intuito de ter alguém que admiro e que tem a profissão que eu gostaria de ter a olhar para o meu livro. O João ligou-me passados dois ou três dias a dizer que gostava de enviar o meu manuscrito para a Penguin. E assim foi.

É possível viver da escrita em Portugal?
Não estou num ponto em que consigo viver do tipo de escrita em que se está sentada em casa no computador apenas a escrever. Diria que nem dez pessoas em Portugal estão nesse ponto. E esse patamar exclui muitos escritores que dão aulas em universidades ou fazem workshops de escrita, por exemplo. Mas estou nesse processo de querer viver da escrita e das coisas que a rodeiam. Já escrevi o guião de uma longa-metragem, crio conteúdos para as redes sociais, sempre relacionados com livros, vou às feiras do livro, a escolas e a outros eventos, tudo isso contribui para conseguir viver da escrita.

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O que dirias aos jovens portugueses que gostariam de ser escritores?
Recebo muitas mensagens de jovens, quase diariamente, e fico muito lisonjeada por confiarem em mim os seus manuscritos, as suas ideias. Tento dizer aquilo também que me foram dizendo a mim ao longo do meu percurso porque também eu continuo a ser uma jovem como os que me contactam: não podemos desistir e por mais difíceis que as coisas pareçam cabe-nos a nós ter a certeza absoluta de que tentámos tudo para ver o nosso livro publicado.

É impossível ser-se escritor, ou ser-se pelo menos um bom escritor, sem se ler muito e por isso aconselho que a leitura seja uma prioridade porque é assim que se treina as capacidades necessárias para depois poder construir boas histórias. Também aconselho a que procurem enviar os livros não para todas as editoras do país, mas sim para as chancelas que façam mais sentido. Um dos problemas do mercado editorial português é que quem está à procura de publicar o seu livro não consegue perceber onde é que este se enquadrará melhor, e o que acontece é que as editoras ficam cheias de livros que não encaixam no seu programa editorial.

Ler é quase como um segundo trabalho para ti?
Sim. Acredito que a evolução, ou seja, tornar-me uma melhor escritora, passará muito pelas leituras que for fazendo ao longo da minha vida, não só porque a grande maioria dos livros que li são melhores do que os livros que escrevo, mas também porque a criatividade tem de ser muito estimulada. Quando era mais nova achava que quando estava a escrever não devia ler ao mesmo tempo porque me podia deixar influenciar ou, mesmo sem ter essa intenção, copiar parte da história, e isso agora parece-me uma parvoíce. É a consumir arte que criamos mais arte e é por isso que a leitura está incluída no meu horário de trabalho.

E já estás a trabalhar no teu próximo livro?
Sim, mas ainda não é nada. Começar a escrever com a certeza de que aquilo será um livro é reduzir a autocrítica, que é muito necessária na arte. Até agora tenho começado por escrever aquilo que me parece poder vir a ser uma história, mas só o chamo de livro algum tempo depois de o terminar e de olhar para ele e conseguir ver esse potencial editorial. E não no sentido de ir vender muito ou pouco, é porque a maior parte das coisas que escrevo não é interessante.

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