Rebecca Kuang: “O livro deve mudar para acolher a nova língua”
Autora de Impostora e Babel, considerada uma das melhores contadoras de histórias da sua geração, esteve em Lisboa e falou sobre a necessidade de se reinventar constantemente.
Mesmo sem ser aspirante a romancista, é difícil não sentir uma ponta de inveja de Rebecca F. Kuang. Aos 28 anos, Kuang é autora de cinco romances best-sellers do New York Times e do Sunday Times, campeã de debates, tradutora, graduada em Oxford e Cambridge e já ganhou quase tudo o que há para ganhar no campo da literatura fantástica — e não só. O premiado romance de fantasia histórica Babel foi considerado um dos melhores romances do género em 2022, mas o seu livro seguinte, Yellowface (editado em Portugal pela Desrotina, chancela do grupo Infinito Particular), catapultou Kuang para um nível quase estratosférico da fama literária.
Entre dois encontros que reuniram centenas de fãs da escritora em Lisboa, Kuang conversou com o P3 numa atípica manhã de nevoeiro de Julho. "O lançamento de um livro costumava deixar-me muito nervosa, estava sempre a verificar todos os pormenores, mas agora sou capaz de me sentar e orgulhar-me do que escrevi. Já passei por todos os altos e baixos e sei o que esperar", refere. "Sinceramente, não olho para trás muitas vezes. Não penso nos primeiros livros que escrevi porque quero estar concentrada no próximo projecto que está para vir. Acho que se passasse demasiado tempo a olhar para trás, sendo tão jovem, sentiria que a minha vida tinha acabado."
Rebecca nasceu em Guangzhou, na China, em 1996, mas mudou-se para Dallas, no Texas, aos quatro anos. A paixão pela leitura herdou-a do pai, um leitor voraz que imprimia cópias de romances já no domínio público para lerem juntos. Foi com as páginas de Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, 1984 e A Quinta dos Animais, ambos de George Orwell, que aprendeu a falar inglês. "Passava dias e dias na biblioteca", confessa. Sempre desconfiou que um dia haveria de se fazer escritora, mas as certezas só vieram quando terminou o primeiro manuscrito — já lá vão seis anos e cinco livros publicados, com mais dois a serem escritos neste momento.
Depois de estudar História na Universidade de Georgetown, Kuang frequentou a Magdalene College em Cambridge, no Reino Unido, com uma bolsa de estudos Marshall, para se pós-graduar em Estudos Chineses. Seguiu para a Universidade de Oxford, para um mestrado em Estudos Chineses Contemporâneos, e para Yale, para se doutorar em Literatura do Leste Asiático.
Foi com todo este conhecimento que Kuang se estreou com A Guerra das Papoilas (trazido para Portugal pela Desrotina, tal como todas as obras da autora), que escreveu durante um ano sabático na China, quando tinha 22 anos. Estava em Pequim, ensinava alunos do secundário a debater durante o dia e queria arranjar forma de passar o tempo à noite. Começou a aprender mais sobre a história da família, em particular sobre o período tumultuoso da história chinesa do século XX. Os avós viveram durante a Segunda Guerra Sino-japonesa e o pai participou nos protestos na Praça Tiananmen, em Junho de 1989. É a história clássica vivida por muitos escritores: querer ver a sua cultura, herança e história representadas num romance.
Apesar de ser profundamente inspirado em acontecimentos reais, Kuang quis criar uma China ficcionada e sombria, separada da realidade. A fantasia permitiu-lhe criar uma história familiar e, ao mesmo tempo, distante. "Estava a ler muito e a pensar na Segunda Guerra Sino-Japonesa, na Revolução Cultural e na Guerra Civil Chinesa e queria escrever uma personagem que viesse de um meio que pudesse representar todas estas mudanças gigantescas", recorda. E assim nasceu Fang Runin, ou Rin, a personagem principal da série que Kuang uma vez descreveu como: "E se Mao Tsetung fosse uma adolescente?".
"Além disso, quando tinha 19 anos e comecei a escrever, adorava fantasia, era tudo o que eu lia. Acho que acabamos sempre por escrever o que gostamos de ler."
Ainda que esse tenha sido o primeiro livro, Kuang mantém continuamente o leitor em estado de alerta, sem nunca saber de onde vem a próxima traição, batalha ou reviravolta. A Guerra das Papoilas rendeu-lhe o prémio Crawford e o prémio Compton Crook de melhor primeiro romance em 2019, com A República do Dragão e Burning God (ainda não traduzido para português) a completarem a trilogia. Ao longo dos três livros, seguimos a história de Rin, uma órfã de pele escura e raízes humildes que entra em Sinegard, a escola militar mais prestigiosa de Nikan, e acaba a lutar na linha de frente de uma guerra que parece não ter fim.
Kuang recorda que foi particularmente difícil escrever o capítulo que retrata vividamente cenas do Massacre de Nanquim e as atrocidades cometidas pelas tropas japonesas nas semanas que se seguiram à entrada na cidade, em Dezembro de 1937. Assassínios em massa, execuções indiscriminadas, violações, pilhagens, mutilações e todo o tipo de violências sobre a população civil da cidade foram registadas por diversas testemunhas, tanto chinesas como ocidentais. O balanço da chacina é incerto e permanece um assunto polémico, com cálculos que oscilam entre os 50 mil e os 300 mil mortos. "Foram palavras muito, muito complicadas de escrever e não voltei a olhar para elas porque é difícil pensar nisso."
Oxford, traduções e o Império Britânico
Perita em escrever fins trágicos para personagens complexas que caminham constantemente sobre a linha ténue entre ser o herói e o vilão, Kuang diz que há uma coisa comum em todos os seus livros: "Sei sempre como vão acabar." "As pessoas perguntam-me: como é que consegue escrever personagens tão horríveis? E a resposta é que não importa que a personagem seja boa, importa que seja interessante", garante, acrescentando: "Mesmo que uma personagem tome decisões terríveis, continuamos a querer que o leitor se interesse pelo que vai acontecer a seguir." E como é que se constroem personagens "tão reais"? "O meu método é ter conversas imaginárias com amigos imaginários até sentir que são pessoas reais e que as conheço."
Depois da trilogia Guerra das Papoilas, a escritora salta para a fantasia histórica porque fazer a mesma coisa seria "suicídio criativo", como chegou a dizer numa entrevista. "Outra pergunta que me fazem muito é como consigo escrever dentro de géneros tão diferentes. Simplesmente não olho para trás. Nunca leio os meus trabalhos antigos. Estou sempre a encontrar novas influências, novos professores e novos estilos. E escrevo inspirando-me no autor que esteja a ler na altura. Na minha opinião, não vale a pena tentar recriar algo que já foi feito. Só podemos tentar melhorar e continuar a aperfeiçoar o nosso ofício."
Kuang, que se sente extremamente inspirada pelos sítios por onde passa, escolheu a cidade de Oxford, no Reino Unido, para ser o centro do seu quarto livro, Babel, publicado em 2022. "Oxford já é um lugar muito mágico na imaginação literária. Por exemplo, nos livros de Philip Pullman, que adorava quando era criança. Foi tão bonito quando finalmente cheguei a Oxford. E há a contradição de entrar num lugar com que se sonhou toda a vida e ser-se confrontado com a realidade. Quis escrever sobre isso", refere, entre risos.
E escreveu. Babel passa-se numa versão alternativa da Inglaterra vitoriana, onde os tradutores detêm as chaves do Império Britânico, e explora o poder da linguagem e a violência do colonialismo. Centenas de crianças são retiradas de todos os cantos do império e criadas em Inglaterra. Como dominam línguas como o árabe, mandarim ou hindi, a esperança é que, mais tarde, possam trabalhar no prestigiado Real Instituto de Tradução, também conhecido como Babel, da Universidade de Oxford. O trabalho destes estudantes é utilizado para benefício dos ricos e poderosos do país e, apesar de a personagem principal, Robin, ter a esperança de que a tradução seja uma forma de unir as pessoas, acaba por perceber que, nesta estrutura colonial, "um acto de tradução é um acto de traição".
O que se perde quando uma determinada frase ou palavra é traduzida de uma língua para outra é um dos pontos centrais deste romance. Perguntamos a Kuang como encara a ironia deste livro estar agora traduzido em mais de 20 línguas, incluindo português. "É claro que se vai sempre perder alguma coisa, mas algo que é emocionante na tradução é que também se ganha alguma coisa. O livro deve mudar para acolher a nova língua e em todo este processo tem sido muito agradável conhecer muitos dos tradutores e perceber as escolhas específicas que fizeram e como deixam a sua própria marca."
Kuang começou por utilizar iniciais para assinar as suas obras literárias ("Era o que muitas autoras da minha idade faziam na altura"), mas no seu quinto livro, uma ficção contemporânea com um tom mais autobiográfico, decidiu assumir o primeiro nome. Foi com Impostora (Yellowface), um livro mordaz e satírico sobre como a indústria literária tenta lucrar com a raça e identidade dos autores, que muitos leitores ficaram a conhecer Kuang e que a escritora foi catapultada para a fama. "Para mim, foi um processo bastante natural porque não aconteceu de um dia para o outro. A minha curva de exposição ao público foi aumentando gradualmente ao longo do tempo."
Fora e dentro das 300 páginas, a escritora viu-se obrigada a discutir o facto de os autores asiáticos (e não só) serem vinculados à sua etnia, e como categorizar livros como "asiáticos" é redutor. A personagem principal, June, tem uma relação complicada com as redes sociais, algo que não aflige Kuang, que conseguiu encontrar o "equilíbrio perfeito" entre 'estar ligada' e não deixar que a internet lhe domine a vida. "É uma questão de tempo. Dou aulas e estou a trabalhar na minha dissertação, a fazer digressões e a trabalhar em novos livros, não consigo fazer tudo. Acho que as redes sociais são uma enorme perda de tempo, porque não tenho muita força de vontade e se começo a fazer scroll, passo horas nisso. Permito-me ir ao Instagram durante meia hora por dia."
Numa altura em que muitos autores utilizam o booktok — termo que resulta da junção de “book” (livro) e “tok” (referente à rede social TikTok) — para chegar a novos leitores, Kuang recusa-se a ceder a essa "pressão". "Os autores não precisam de estar no TikTok se não acharem isso divertido. Por vezes, são pressionados a fazer vídeos... acho que isso não ajuda realmente a promover o livro. O TikTok sempre me pareceu um espaço para leitores recomendarem livros uns aos outros e não para autores falarem dos seus livros."
A autora, que diz não apreciar adaptações televisivas ou cinematográficas de livros que já leu ("Estraga-me sempre a experiência"), está "fortemente envolvida" nas adaptações das suas obras (Babel pode transformar-se numa série ou filme nos próximos tempos). Mas se há coisa que não consegue sequer pensar é a quem caberão os papéis de protagonistas.
Para já, continuará a fazer malabarismo entre terminar um doutoramento, ser tradutora e escrever os próximos dois livros (o primeiro a ser publicado já em Agosto de 2025). "Passa-se na década de 1980 e as minhas inspirações foram Neil Gaiman, Lewis Carroll e O Inferno, de Dante. Chama-se Katabasis, é um romance do género fantástico, mas muito diferente de A Guerra das Papoilas. Gostei muito do processo de escrita e estou muito entusiasmada para que o leiam."