Aos 25 anos, Faridah Àbíké-Íyímídé quer “mudar o panorama da indústria literária” para sempre
A escritora britânica, que esteve em Portugal para apresentar o seu novo livro, criou um programa para ajudar escritores jovens a entrar no “pouco transparente e difícil” mercado literário.
Abrir espaço para "jovens negros, de classes baixas e que pertencem à comunidade LGBTI+" — como ela — e acabar com o desequilíbrio em termos de representação numa indústria editorial "desesperada por histórias diversas". Podem parecer desafios hercúleos e inalcançáveis, mas a jovem escritora Faridah Àbíké-Íyímídé já deu o pontapé de saída para os cumprir.
Aos 20 anos, era uma "estudante com pouco dinheiro que começou a escrever para fazer amigos fictícios". Foi na Universidade de Aberdeen, na Escócia, que Abíké-Iyímídé, nascida e criada no Sul de Londres, criou a história dos dois únicos estudantes negros (e as suas lutas contra um agressor anónimo) numa instituição predominantemente branca. A editora norte-americana Macmillan fez uma aposta de quase um milhão de euros em Ás de Espadas, que se tornou um fenómeno mundial, e num segundo romance da autora, ainda por escrever.
A romancista, agora com 25 anos, teve o sonho de "escrever histórias sobre jovens negros a salvar (ou a destruir) o mundo durante toda a sua vida” e foi sugar inspiração ao seu tempo na universidade — onde se sentia uma "extraterrestre" — e às relações que construiu com amigos e colegas, quase sempre "tão diferentes" dela. O P3 conversou com a autora horas antes de apresentar o seu novo livro, um thriller para jovens adultos, na Feira do Livro de Lisboa.
O teu novo livro, A Cama onde Elas se Deitam, acaba de ser publicado em Portugal. O que podem esperar os leitores?
Gosto de o descrever como uma mistura entre o filme Giras e Terríveis e a série Wednesday. Seguimos a história de Sade Hussein, uma rapariga órfã que vai para um colégio interno. Pouco tempo depois, a colega de quarto desaparece e Sade torna-se suspeita e tem de se esforçar para provar que não é culpada e, ao mesmo tempo, proteger os seus muitos segredos.
Dois dos teus livros passam-se em escolas privadas. É um cenário que te fascina?
É um tema muito interessante para mim, que não andei numa escola privada. Nunca escrevi um livro de fantasia e isto é o mais próximo que consigo estar de um mundo quase fantástico onde os alunos têm tantos privilégios na ponta dos dedos que sentem que podem fazer qualquer coisa e não ser castigados. Gosto de ler livros e de ver programas de televisão sobre escolas privadas e estudei Antropologia na universidade, por isso debruçar-me sobre este mundo é como se estivesse a fazer um estudo sobre aquelas pessoas. Na universidade, estava sempre a observá-las porque achava muito interessante o contraste entre mim e elas. Também tive muitos colegas que tinham frequentado escolas privadas e tentei compreender a sua perspectiva e a forma como isso moldou a pessoa em que se transformaram.
Quando e como começou a tua relação com os livros e com a escrita?
Sempre gostei de ler e de histórias no geral, mas quando era mais nova tinha muitas dificuldades com a leitura porque, e só soube isto aos 18 anos, tenho dislexia. Ainda assim, sempre fui uma leitora ávida, a minha mãe ajuda-me a ler. Já escrevia quando era adolescente, mas o primeiro livro que escrevi com a intenção de ver publicado só ocorreu na universidade. Cresci em Croydon, uma cidade muito diversificada na região de Londres, mas frequentei a universidade na Escócia. Em Croydon há africanos, caribenhos, sul-asiáticos e asiáticos orientais e sempre me senti muito normal, mas na Escócia e a demografia é completamente oposta, quase só existem pessoas brancas. Toda a minha experiência foi um choque porque as pessoas tratavam-me quase como se eu fosse uma extraterrestre. Acho que os livros que me fizeram apaixonar pela leitura foram os da Cassandra Claire, a série Os Instrumentos Mortais. Claire já escreveu mais de 20 livros nesse universo e estou neste momento a relê-los. Também sou uma grande fã da Emily Henry e acabei o novo livro dela, Uma Boa História, há poucos dias.
E foi toda essa experiência na universidade que inspirou o teu primeiro livro?
Sim, sem dúvida. Eu venho de um agregado familiar monoparental. Fui criada pela minha mãe e durante a minha infância e adolescência não tínhamos muito dinheiro. Croydon é uma cidade muito operária e a grande maioria das pessoas tem dificuldades financeiras, toda a gente estava na mesma situação. Ir para a universidade foi um choque no que toca à cor da pele e ao estatuto socioeconómico das pessoas com quem me cruzei. Toda a gente tinha diferentes origens e muitos vinham de escolas privadas, tinham vivido vidas cheias de privilégios. Acho que nunca tinha conhecido pessoas ricas e isso inspirou-me a escrever sobre essas diferenças e sobre esse novo mundo. Também adoro programas de televisão, séries e filmes sobre pessoas ricas. Gosto muito da série Gossip Girl e quis escrever algo semelhante, mas com personagens principais negras. E assim surgiu o meu primeiro livro: no meu primeiro ano de universidade, quando tinha 19 anos e numa altura em que me sentia muito só.
Foi com esse primeiro livro que conseguiste um contrato milionário com uma editora. Foi um processo fácil?
Foi um processo muito stressante e com muita pressão. Durante a adolescência, sempre achei que ia escolher uma profissão prática, que me permitisse ter a vida estável que não tinha tido até ali, por isso olhei para a universidade como uma oportunidade para ter passatempos e aspirações criativas. Depois disso, prometi a mim mesma que ia levar a vida a sério. O facto de ter escrito o meu primeiro livro no meu primeiro ano de universidade e de ter conseguido um bom contrato fez-me sentir como uma impostora. Sentia-me estranha e pensava muitas vezes: "Eu mereço isto? Porque é que isto está a acontecer a alguém como eu?".
Disseste numa entrevista que ter um livro que se tornou um sucesso instantâneo internacional também colocou muita pressão sobre ti. De onde vinha essa pressão e como lidaste com ela?
Vinha de mim própria, mas também de outras pessoas. Mesmo que não estivessem a pressionar-me com palavras ou datas, sentia a expectativa sobre mim porque nunca podemos prever se um livro vai ou não ser um sucesso, mesmo já tendo um contrato assegurado. Às vezes, o sucesso parece quase aleatório, é uma questão de ter sorte no momento certo. Escrevi o meu primeiro livro só para mim, não havia ninguém à espera, não havia qualquer expectativa. No segundo, já tinha leitores, a minha editora, foram circunstâncias muito diferentes. É uma pressão invisível, porque não havia ninguém a dizer-me nada, mas senti que ia desiludir toda a gente, por isso é que demorei muito tempo a escrever o livro. Houve um intervalo de três anos entre o lançamento de Ás de Espadas e A Cama Onde Elas se Deitam, o que não é normal no sector editorial para jovens adultos, em que há lançamentos todos os anos. Mas eu ainda estava a estudar e tinha uma tese para escrever...
Em 2019, criaste um programa de orientação para escritores negros sem agente. Fez parte do teu plano para "mudar o panorama da indústria literária”?
Quando estava a passar pelo processo de publicar o meu livro, sentia que havia muita falta de transparência. É um sector em que é complicado entrar e era difícil saber, por exemplo, como conseguir um agente ou como fazer chegar os livros às editoras. Foi por isso que quis reunir colegas que já tinham agentes e livros publicados para tentar orientar autores ou escritores que estivessem a começar. Com o Avengers of Colour (Vingadores de Cor) eu queria fazer a ponte entre escritores e a indústria. Só quem tem contactos é que consegue entrar e eu não queria que a indústria literária continuasse a focar-se sempre nas mesmas pessoas, a escrever sempre para as mesmas pessoas. Neste momento, o programa já não está activo porque não tenho tempo para ajudar da mesma forma que tinha antes, mas muitos dos escritores que acompanhámos agora têm agentes ou contratos em curso, por isso acho que foi um projecto bem-sucedido. Durante os anos em que o programa decorreu, recebíamos os primeiros capítulos dos manuscritos de autores de cor e víamos qual de nós seria a melhor pessoa para ajudar, dependendo do género do livro em questão. Alguns dos meus amigos, como Chloe Gong, que escreveu Esses Prazeres Violentos, e Aiden Thomas faziam parte do programa como mentores.
Desde a publicação do teu primeiro livro notaste alguma mudança no que toca à diversidade no mercado editorial?
Sem dúvida, principalmente por causa de redes sociais como o TikTok. Hoje, temos acesso a livros que não estariam nas prateleiras sem estas redes sociais, nem seriam traduzidos para várias línguas. Com o TikTok, os leitores têm acesso a livros e autores que se calhar nem conheciam e querem ver essas obras traduzidas nos seus países. E acho que é por isso que vemos mais livros de pessoas negras a serem traduzidos para português, o que é muito bom de ver.
Já escreveste dois thrillers mais direccionados para jovens e vários romances. O que se segue?
Quero escrever tudo e passar por todos os géneros literários. Neste momento, estou a trabalhar numa fantasia, mas gosto muito da ideia de nunca fazer a mesma coisa. Os géneros podem ser muito semelhantes e os livros saírem muito diferentes, seguirem personagens diferentes em mundos e cenários distintos. Quero escrever algo que seja muito diferente da última coisa em que trabalhei, como a fantasia ou os romances históricos, por exemplo.