Quando o subsídio de férias só dura um dia

Quem nunca passou por “apertos” não sabe o que é viver no fio da navalha, chegar ao fim do mês com 10€ e temer que na bomba de gasolina, o valor ultrapasse a quantia que resta, para ir para o trabalho

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"Há crianças que não sabem como é a praia" Lukas/Pexels
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Incomoda muito boa gente saber que determinada beneficiária do Rendimento Social de Inserção (RSI) foi ao cabeleireiro, porque a pobreza deve exigir recato, modéstia e subserviência. Não chega ser-se pobre, tem de se parecer mesmo pobre. Há até conteúdos nas redes sociais que satirizam o facto de muitos dos que vivem mal, não abdicarem da torrada e da meia de leite no café da sua rua. Há uma tendência para se ser solidário, perante a profunda desgraça, mas se se detetar o mínimo "luxo", acaba-se todo o reconhecimento das dificuldades alheias.

Carolina estoirou o subsídio de férias no dia em que o recebeu. É funcionária de uma conhecida cadeia de supermercados e assim que o dinheiro caiu na conta foi levar os dois filhos ao dentista (ignorando a dor de dentes que a incomoda há uma data de meses), fez a revisão do carro para o poder levar à inspeção e deu com um imprevisto no telhado de casa, que reivindica a mudança de algumas telhas.

Não sobrou nada. Por isso, as férias vão ser por casa e na cidade onde trabalha e vive, com as mesmas pessoas com quem se cruza todos os dias e as mesmas rotinas. Terá algum tempo extra para sair com os filhos até à piscina municipal, mas pouco mais a desviará do costume. E cola-se um ano ao outro, sem que espaireça, sem que conheça outros locais, outras pessoas, sem que possa regressar, quiçá com saudades.

O motivo pelo qual, tantos e tantas trabalham para poderem viajar tem exatamente a ver com o facto de funcionar como terapia, limpeza da alma. Sair, não cozinhar, não arrumar, não limpar, o mínimo de preocupações, desligar completamente do mundo e permitir-se receber uma massagem à beira mar, um farto pequeno almoço de hotel, um passeio de barco…

As sondagens mais recentes indicam-nos que os portugueses estão a viajar e cada vez mais, mas como toda a estatística, os números podem falar por si, mas escondem outras realidades. A realidade de quem, mesmo trabalhando, não tem dinheiro para usufruir de umas merecidas férias, longe do quotidiano. Há tanta gente que não pode levar os filhos a conhecer outras cidades, outros países, crianças que não sabem como é a praia, mas que ironia do destino, algumas serão porventura mais felizes do que as outras, que têm acesso a tudo. É a vida a ser sarcástica.

Quando temos tudo, quando herdamos património ou poupanças, acusamos os outros de não serem empreendedores o suficiente, de não serem audazes, de não serem inteligentes para criarem riqueza. Para muitos portugueses, o melhor amigo é o banco, a quem podem pedir um empréstimo, utilizar o cartão de crédito, num mês de maiores dificuldades. Quem nunca passou por "apertos", não entenderá esta crónica, não sabe o que é viver no fio da navalha, chegar ao final do mês com 10€ na conta e temer que na bomba de gasolina, o valor, por algum infortúnio, ultrapasse a quantia que resta, para se deslocar para o trabalho.

O português faz contas de cabeça até para pagar um gelado com mais de duas bolas aos filhos. E isso não são férias.

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