Guia para viajantes desapressados

Basta consultar alguns blogues sobre viagens para ficarmos impressionados com o poder de disseminação da síndrome dos viajantes apressados, que se baseia no princípio da corrida contra-relógio.

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A beira mar devia ser "o momento de uma experiência total, de um êxtase global" Asad Photo Maldive/pexels
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Os romanos iam para o campo para fugir da canícula em Roma. Durante esse tempo estival, dedicavam-se a fazer unicamente aquilo que era inútil, mas que elevava a alma e alimentava o espírito: leitura, filosofia, meditação e conversa entre amigos. A prática do ócio (otium) opunha-se radicalmente ao “negócio” (negotium), no qual se incluíam as obrigações, os horários e as limitações.

No belíssimo livro Petite Philosophie de la Mer, a filósofa francesa Laurence Devillairs chama a atenção para o facto de, atualmente, termos perdido essa herança romana. Na sua perspetiva, a forma como vivemos as férias e os fins-de-semana não altera, na essência, a nossa relação com o tempo: é dominada pelo “negócio”, o que nos leva a estar permanentemente ocupados a fazer alguma coisa.

Já o princípio romano do ócio era outro. Esse tempo livre não tinha nada que ver com os passatempos contemporâneos, que se assemelham em tudo ao “negócio”. Na visão desta filósofa, os nossos tempos de repouso estão repletos de programas e as nossas viagens são mais preenchidas do que as nossas agendas, não constituindo mais do que curtas pausas numa atividade incessante. E os nossos fins-de-semana não servem para mais do que recarregar baterias para melhor investir no trabalho. Quando regressamos ao emprego, não retomamos simplesmente o ritmo de trabalho: nós pura e simplesmente nunca o deixámos.

De acordo com esta lógica, não resistimos a contaminar as nossas férias, transformando-as num programa a cumprir. Em busca do paraíso a reencontrar, corremos contra o tempo para realizar visitas guiadas, tirar fotografias, ver locais pitorescos, fazer programas, sorrir para a câmara, filmar os acontecimentos. Basta, por exemplo, consultar alguns blogues sobre viagens para ficarmos impressionados com o poder de disseminação da síndrome dos viajantes apressados, que se baseia no princípio da corrida contra-relógio para ver o mais possível no menor tempo disponível.

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No belíssimo livro Petite Philosophie de la Mer, a filósofa francesa Laurence Devillairs chama a atenção para o facto de, atualmente, termos perdido a herança romana da prática do ócio Val_Iva/Getty Images

Quando os viajantes apressados divulgam o seu planeamento dos dias, o tempo fica de tal modo preenchido, que se torna obrigatório acelerar para cumprir os objetivos delineados. E, ainda assim, mesmo que o preço a pagar seja o de chegarmos ao fim das férias mais exaustos do que no início, a probabilidade de falharmos pontos de interesse é alta. E a possibilidade de passarmos por tudo sem contemplarmos nada é ainda maior.

Para contrariar esta tendência e usufruir plenamente da arte de viajar, há que revisitar o significado da palavra “flanar” que, em linha com a definição do dicionário Priberam, significa “passear sem destino e sem pressa, por mera distração”. Por sua vez, na Wikipédia o termo flâneur designa “errante”, “vadio”, “caminhante” ou “observador”, correspondendo a um tipo literário da França do século XIX, essencial na imagem das ruas de Paris. Foi o filósofo Walter Benjamin, que, baseando-se na poesia de Charles Baudelaire, elevou essa figura à categoria de emblemático arquétipo da experiência moderna.

Recuando no tempo, o termo latino de onde surgiu a palavra vacances significava “estar sem”, “estar vazio”, “ser livre”. Transportando este conceito para o presente, para aproveitar plenamente as férias há que resistir às solicitações e às obrigações para se dedicar ao simples ato de existir. “As coisas adquirem um brilho particular quando nos damos tempo para não fazer nada, para estarmos simplesmente atentos àquilo que nos rodeia”, escreve Laurence Devillairs. Desta forma, a mais ténue alteração transforma-se num pequeno acontecimento: a luz que entra pela janela projetada na parede, um diálogo interessante com um familiar, a inteligência de um bom livro ou o som revigorante das ondas do mar.

Segundo esta filósofa, um dos locais onde a incapacidade para ter umas verdadeiras férias mais se faz sentir é, paradoxalmente, à beira-mar. Isto, porque levamos a permanente necessidade de ação tão longe que transformamos as vagas em asfalto e, montados em jet skis, fazemos do mar uma avenida. “Parece que nos falta o carro, o barulho dos motores, a poluição, os engarrafamentos”, reflete.

Acabamos, assim, por estar à beira-mar sem contemplarmos o mar. Este transforma-se num simples cenário, reduzido ao conceito de piscina ou de pista entretenimento, que se torna quase indiferente, quase invisível. Ou, então, parece que estamos na praia como se estivéssemos num miradouro a observar os veraneantes mais do que as ondas, procurando restaurar os laços da vida em sociedade, como se estivéssemos num condomínio.

A beira-mar devia ser, pelo contrário, o momento de uma experiência total, de um êxtase global, solicitando a vista, o cheiro, a audição e o tato. Este é um dos raros prazeres que engloba todos os sentidos. Para usufruirmos desta vivência, é necessário libertar o tempo, para estarmos disponíveis para aquilo que se nos oferece: ver, sentir, escutar, tocar, mas sem fotografar, nem tão-pouco procurar rentabilizar. Apenas deste modo poderemos trocar a obsessão de fazer, do “negócio”, pela disponibilidade para nada fazer, ou seja, para o ócio.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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