Amir conquistou uma medalha: a de não ser apanhado
Este refugiado foi o rei do ciclismo... durante um minuto. Fugiu aos adversários, como já tinha fugido aos talibã, ao afogamento e ao suicídio. “Sou um dos sortudos que sobreviveram”, diz ao PÚBLICO.
Todos ouvimos na escola, ou em casa, que “o que importa é participar”. A premissa procura esfriar o ímpeto competitivo das crianças, suavizando o peso das derrotas, e há alguém a levá-la muito a sério nos Jogos Olímpicos.
No ciclismo, Amir Ansari tinha um objectivo modesto para a prova de contra-relógio: participar e não ser apanhado. E não foi. Os ciclistas saem um a um, com intervalos de um minuto e meio, pelo que era provável que Jan Tratnik, esloveno de tarimba que arrancou a seguir a Ansari, pudesse ultrapassar o refugiado de 24 anos. Não ultrapassou.
“Achava que ia ser apanhado antes do quilómetro 10, portanto fico contente por ter chegado ao fim sem ser apanhado”, apontou ao PÚBLICO, entre risos, no final da prova, garantindo que tinha acabado de cumprir o seu grande sonho de carreira: estar nos Jogos Olímpicos.
“O Amir desapareceu”
Amir Ansari foi o rei do ciclismo durante um minuto – em rigor, nem chegou a tanto. Não tendo sido dobrado por Tratnik, e como foi o primeiro a arrancar para o “crono”, pôde ser o primeiro na meta. Foi, portanto, líder da classificação provisória enquanto o esloveno não chegou à meta no Grand Palais. E não lhe tirem essa honra.
- Soube-lhe bem ser líder durante uns segundos?
- Nem imagina! Foi curto, mas foi óptimo. A atmosfera na meta foi incrível e deu-me força para não ser apanhado e terminar sozinho.
Amir Ansari está tão pouco habituado a estas lides que, ao contrário dos adversários, não foi logo à zona mista falar com os jornalistas. É certo que havia poucos interessados nele, mas eles existiam. Talvez se tenha fixado demasiado na ideia de fugir – mesmo que aos media.
- O Amir não vai passar por aqui?
- Ele tem de passar. Mas não sabemos dele, desapareceu. Mas andamos à procura dele.
O diálogo com uma das coordenadoras da zona mista foi poucos segundos antes de o ciclista surgir no local, sempre sorridente – e envergonhado com o lapso.
Afinal, Amir não é um fugitivo imbatível. Não foi apanhado no contra-relógio, mas foi depois dele. E mais vale assim.
“Tive medo, porque não sabia nadar”
Em rigor, Amir tem levado toda a vida numa lógica de “apanhem-me, se puderem”.
Achava que seria apanhado pelos talibã no Afeganistão e no Irão, como membro da muito perseguida comunidade Hazara – mas não foi. Ao contrário do pai, executado como muitos outros.
Amir achava que seria apanhado na fuga num carro com mais 15 pessoas por fronteiras iranianas, turcas e gregas, com tiroteios e acidentes – também não foi.
Achava que seria apanhado quando saltou de um barco que furou – voltou a sobreviver. “O barco era para nove pessoas, mas puseram-nos 20 ou 30 lá. Na fronteira entre a Turquia e a Grécia, houve pessoas que furaram o nosso barco, porque queriam que voltássemos para trás. Mas não havia regresso para mim. Tive medo, porque não sabia nadar”.
Uma vez mais, Amir não foi apanhado pela tragédia. E conseguiu chegar à ilha de Lesbos, um dos maiores campos de refugiados da Europa.
E não foi apanhado também pela própria mente, quando, já em segurança, na Europa, pensou em suicidar-se. “Pensei em suicidar-me, porque sabia que se me enviassem de volta para o Afeganistão iria morrer na mesma”, apontou.
Sem-abrigo na Suécia
Nessa altura, Amir estava na Suécia e a depressão profunda, conta, foi ultrapassada não apenas com medicação e acompanhamento médico, mas com ajuda do ciclismo.
No Afeganistão, já se tinha juntado a alguns ciclistas que faziam treinos nas montanhas e tinha conhecido Shannon Galpin, activista que desenvolvia, na altura, uma equipa feminina de ciclistas afegãs. Foi a ela que recorreu na Grécia e acabou por conseguir chegar à Suécia, com ajuda, ainda adolescente.
Depois de lhe ser recusada a nacionalidade, foi expulso do campo de refugiados, em Estocolmo, e acabou sem-abrigo – até aparecer o Stockholm Cykleklubb. O clube de ciclismo ajudou-o a encontrar uma família que tinha um quarto a mais.
Juntou-se ao clube de Estocolmo e, em oito anos, chegou aos Jogos Olímpicos. “O ciclismo salvou-me a vida. Na bicicleta, esquecia os meus problemas e limitava-me a aproveitar o momento”, diz, citado pelo Cyclingweekly.
“Sou dos sortudos que sobreviveram”
“Espero ser um modelo para os refugiados. Espero inspirar pessoas que estiveram na mesma situação do que eu. Tentar que acreditem que devem lutar pelos seus sonhos. Eu sou um dos sortudos que sobreviveram”, aponta ao PÚBLICO.
A vida deste ciclista afegão tem sido uma fuga permanente ao abismo – até ver, com fortuna. E trabalho.
Amir Ansari corre agora pela Svealand Cycling Team, na qual já ganhou o epíteto de “Peter Sagan afegão”, pelo perfil explosivo – e também por idolatrar o eslovaco. E conjuga tudo isto com uma bolsa que lhe foi atribuída para estudar engenharia na universidade de Uppsala. “Estudo na universidade, na Suécia, mas estou no ciclismo a 100%. Aliás... a 200%”, garante.
Em Paris, Amir Ansari terminou em 30.º lugar, mas ignoremos isso. Foi líder do contra-relógio durante alguns segundos. Sim, naquele momento ainda tinha sido o único a acabar a prova. Mas foi líder. Não lhe tirem isso.