Em Paris 2024 aceitam-se mães – mas só uma hora e numa salinha
Na Aldeia Olímpica, o PÚBLICO visitou um espaço com fraldas, brinquedos, livros e cama. Tudo para um bebé feliz. E os pais atletas? São? A terem de reservar uma hora, e numa pequena sala, talvez não.
Sim, podes cuidar do teu filho, brincar com ele, mudar-lhe as fraldas e passar tempo de qualidade. Faz tudo isso, porque competir não é tudo na vida. Sê feliz. Sê mãe. Sê pai. Nós ajudamos-te com isso aqui na Aldeia Olímpica. Mas cuidado! Faz isso dentro de uma sala com três metros por quatro. E só durante uma horinha. Não abuses.
Se os Jogos Olímpicos falassem, seria isto que diriam a pais e mães atletas que vivem na Aldeia Olímpica. Mas não sejamos cruéis: criar um berçário na casa dos atletas já foi um avanço e tanto – é um conceito em estreia e nem o mais empedernido conservador desdenhará a ideia. Mas será só disto que os atletas precisam?
O PÚBLICO foi visitar este espaço. Na primeira tentativa não encontrámos nenhum atleta a usar o espaço. Na segunda também não. Estranho? Nem por isso. Segundo a voluntária que controla as entradas no berçário olímpico, tem havido, em média, duas famílias por dia.
O copo meio-cheio diz-nos que se pelo menos uma família usar o espaço durante os Jogos já valeu a pena – está, portanto, alcançado o objectivo. Mas o copo meio-vazio sugere que pode saber a pouco.
Uma Aldeia focada no desempenho
Os organizadores apontam que "a aldeia deve permanecer um local preservado, onde apenas os atletas e o pessoal convivem numa dinâmica de desempenho". Dinâmica de desempenho de preceito discutível, já que crê que um atleta a viver sem o seu bebé está em condições de estar no seu melhor, física e psicologicamente.
Vamos a factos. Não há na Aldeia Olímpica, a possibilidade de uma mãe ou pai, a competirem nos Jogos, ficarem alojados em família, com companheiro/a e a criança. No fundo, de permitir que a família seja levada para o alojamento olímpico, sobretudo no caso de crianças ainda muito dependentes. Não há essa possibilidade e não há sala de 12 metros quadrados, com agendamento máximo de uma hora, que resolva esse problema.
A organização criou, ainda assim, um espaço bem equipado: lá dentro, depois de colocada a protecção de plástico para os sapatos sujos, vimos fraldário, fraldas, brinquedos, jogos, livros, pufes, cama, microondas e frigorífico. No fundo, tudo para uma criança ser feliz. Mas e os pais atletas? São? A terem de reservar uma hora para a criança, e numa pequena sala, talvez não.
Alysson Felix, mãe e atleta olímpica, senhora de mais de uma dezena de medalhas, foi a inventora de tudo isto. Muito vocal sobre os problemas das atletas mães, a própria assume que o berçário é curto para as necessidades, e que se deveria ir mais longe, mas que já foi um avanço conseguir esta pequena sala.
“Gostaria de ver dentro da aldeia de atletas uma unidade que fosse para a família, onde o filho pudesse realmente viver dentro da aldeia, talvez com um parceiro ou outra pessoa”, critica. Mas reconhece a relativa vitória: "É um espaço longe de todo o barulho. E pode sentir-se o conforto de casa – está decorado de uma forma que parece um quarto em casa (...) muita gente pergunta ‘por que motivo demorámos tanto?’. É algo que já deveríamos ter tido antes”.
"Penso que isto diz realmente às mulheres que podem escolher a maternidade, estar no topo da sua modalidade e não ter de perder o ritmo", defendeu ainda a norte-americana, em nome da Comissão de Atletas do Comité Olímpico Internacional.
Discrição é ponto de ordem
O processo para utilizar este berçário é relativamente simples. O atleta deve preencher um pedido online, que pode ser para espaço partilhado com outra família ou agendamento privado. Qualquer deles está limitado a uma hora de utilização e é grátis.
É fácil marcar, mas mais difícil é chegar lá. A palavra de ordem parece ser discrição. Há uma placa que diz “berçário”, na entrada da Village Plaza, a praça principal da Aldeia Olímpica, mas depois deixa de haver. Perguntámos a quatro voluntários onde era. Ninguém sabia. Um chegou mesmo a dizer “essa é a única coisa que eu não sei”.
- A única?
- A única!
Ao menos isso.
Fomos a um edifício por “fezada”. No piso 2, tinha uma placa tapada com um autocolante. Descolámos e, por baixo, dizia “nursery”. Eureka! Mas não era ali...
Era no andar em baixo, sendo que não havia nenhuma placa. A ideia será manter o espaço discreto, algo que bate certo com a indisponibilidade da voluntária para dizer que atletas já passaram por ali. “Não podemos revelar, por uma questão de privacidade”. Uma pena para o jornalista curioso, mas, sejamos justos, até faz sentido.
É revelado, porém, que tanto homens como mulheres têm utilizado o espaço e que, geralmente, são os dois pais que utilizam, com uma criança.
- Mas é o atleta e o companheiro, que vem de fora, ou só o atleta?
- Os dois, até porque a criança não conseguiria vir até cá sozinha...
Foi boa a constatação da responsável do espaço. Está bem visto.
Educadora? Veremos em 2028
Questionada se há alguma educadora/ama no espaço, a responsável desse dia diz que não. “Damos só o espaço para as famílias aproveitarem sozinhas. A nossa preocupação é só gerir os agendamentos e manter o espaço limpo”, explica.
E esta é outra limitação. Seria de evidente utilidade uma educadora que pudesse tomar conta das crianças, aumentando o tempo de permanência do bebé na Aldeia Olímpica – e, por extensão, desse mais do que uma hora ao atleta com o filho, já que poderia conviver antes e depois da prova, por exemplo.
Se os atletas quiserem abdicar da Aldeia Olímpica, ambiente que traz evidentes vantagens logísticas, desportivas, humanas e até mentais, podem ir para um hotel. Caso queiram a Aldeia Olímpica, só podem ser pais e mães na tal sala – e durante uma hora. É melhor do que em Tóquio? É. Mas ainda sabe a pouco.
Veremos em Los Angeles.