Dieta carnívora: a nova quimera nutricional

Popularizada por quem tem ganhado fama ao apoiar ideias mirabolantes, a dieta carnívora nunca foi tão falada como agora.

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A ciência é claríssima ao inviabilizar qualquer argumento a favor da dieta carnívora Rui Gaudêncio
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Já se imaginou a comer ovos mexidos com bacon ao pequeno-almoço, um prato cheio de bife grelhado ao almoço e um prato carregado de costelas assadas ao jantar? Tudo isto sem qualquer tipo de acompanhamento. Carne com carne.

Imagino que possa ficar surpreendido se eu lhe disser que muitos o fazem porque acreditam que é a forma mais saudável de se alimentarem. E não está sozinho nesta surpresa: enquanto nutricionista, admito a minha estupefação quando, há alguns anos, me questionaram pela primeira vez sobre a dieta carnívora.

Tudo começou em 2019, quando um cirurgião ortopédico (imagine-se!) decidiu lançar o livro O Código Carnívoro, em que alega benefícios para a saúde na adoção de uma alimentação que inclua apenas carne, peixe e ovos (laticínios não são vistos por todos os seus proponentes como permitidos), excluindo grupos alimentares inteiros como fruta, legumes, sementes, frutos oleaginosos, leguminosas, e todo o tipo de cereais.

Desde o lançamento do livro, algumas figuras públicas já deram a cara (e a voz) por esta nova dieta, entre elas Joe Rogan, Jordan Peterson e até algumas figuras nacionais de menor escala pública. Curiosamente, quase todos os seus defensores são pessoas cujo mediatismo deriva das suas opiniões frequentemente controversas, e não por serem propriamente amigos do conhecimento e da ciência.

Comecemos pelo básico: não existe um único estudo que tente validar quaisquer efeitos de uma dieta carnívora tal qual ela é proposta no livro. O motivo para a falta de produção científica é simples — o racional para um possível benefício não é sequer uma questão, e não merece ser testado. E isto porque os argumentos apontados pelos defensores desta dieta passam pelas típicas alegações evolucionistas — “os nossos antepassados comiam assim” — a par dos argumentos habituais contra os efeitos dos hidratos de carbono, propondo benefícios em eliminar totalmente a sua ingestão. No fundo, a dieta carnívora é uma espécie de conjugação extremada de dieta paleolítica com dieta cetogénica.

Como noutras áreas da sociedade, também na análise de tema relacionados com nutrição devemos desconfiar de abordagens extremas. Quando analisadas ao detalhe, as dietas da moda nas últimas décadas seguem, todas elas, a mesma linha argumentativa populista, rica em falácias que as tornam disruptivas, apelativas e promissoras, convidando a uma rápida propagação.

Ainda assim, quem tiver o mínimo de espírito crítico e gostar de ler e seguir cientistas e profissionais de saúde sérios e isentos, perceberá rapidamente os problemas de uma dieta como a carnívora.

A primeira falácia argumentativa é a de que devemos seguir os mesmos hábitos alimentares dos nossos antepassados. Imaginem se eu vos sugerisse seguir os mesmos hábitos sociais, culturais ou mesmo de higiene do Paleolítico. Não faria sentido, pois não? A evolução tem isto de fantástico: tem permitido uma adaptação constante. Por exemplo, na era do Paleolítico, ninguém conseguia digerir a lactose de forma eficaz, mas uma mutação ocorrida posteriormente permitiu a produção de uma enzima que consegue degradá-la (lactase), e da qual uma grande parte da população mundial ainda hoje beneficia. E até mesmo a nossa microbiota intestinal, extremamente adaptável, consegue ser uma parte importante de todo o processo digestivo, tornando impossível a justificação de que nos devemos basear nos nossos antepassados porque não tivemos tempo suficiente para nos adaptarmos a novos hábitos.

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Há centenas de estudos publicados que dão suporte a variadíssimos problemas de se ingerir muita carne, pouca fruta, poucos hortícolas, poucas leguminosas, ou mesmo poucos cereais integrais CSA-PRINTSTOCK/GETTY IMAGES

A ideia de que os hidratos de carbono são vilões e de que é necessário eliminá-los foi já extensivamente estudada, e as conclusões são sólidas: não há benefícios comprovados que se mantenham a longo prazo.

Em sentido oposto, há centenas de estudos publicados que dão suporte a variadíssimos problemas de se ingerir muita carne, pouca fruta, poucos hortícolas, poucas leguminosas, ou mesmo poucos cereais integrais. Já o oposto parece ser uma excelente aposta. A dieta mediterrânica, por exemplo, tem estado na linha da frente quanto à sua capacidade de diminuir o risco de doenças crónicas não transmissíveis, como diabetes, doenças cardiovasculares, ou mesmo neurodegenerativas. Ora, o que caracteriza a dieta mediterrânica é um baixo consumo de produtos de origem animal, e uma grande aposta em fruta, hortícolas e leguminosas.

Portanto, a ciência é claríssima ao inviabilizar qualquer argumento a favor da dieta carnívora. E permitam-me que deixe ainda um último ponto fundamental. É que ainda que os argumentos a favor da saúde fossem válidos (reforço: não são), o impacto ambiental seria absolutamente ruinoso.

Valha-nos a ciência e quem comunica os seus resultados de forma honesta e sem interesses de qualquer tipo. Assim como noutros tipos de populismos, é necessária uma luta diária contra a desinformação, na qual todos podem ser úteis: produzindo ciência, interpretando-a, ou, simplesmente, fazendo com que chegue ao maior número de pessoas.

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