Biblioteca Pública de Braga: “A minha carta de alforria”

Os livros são requisitados a pedido, não sendo possível retirá-los diretamente das estantes. Podem ser requeridas obras publicadas a partir de 1940.

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"Precisamos assegurar que daqui a 100, 200, 300, 400 anos, este património continue disponível", diz Márcia Oliveira João da Silva
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"Foi, pois, o Auto da Alma que me levou pela primeira vez à Biblioteca Pública de Braga. Com os meus treze anos entrei ali, espontaneamente, de cabeça levantada. Lá dentro, o silêncio, a reverência, e um odor a papel velho e a cânfora: um odor ao mesmo tempo erudito e vegetal."
Maria Ondina Braga, Uma descoberta e um descanso

À minha espera, no átrio da antiquíssima Biblioteca Pública de Braga (BPB), fundada em 1841, estavam as bibliotecárias Márcia Oliveira e Elisabete Lago. Após dois minutos de visita, vi-me no gabinete de um censor do Estado Novo. Sobre a secretária, havia uma máquina de escrever, um telefone, diversos carimbos, lápis azuis e vermelhos, relatórios de leitura e um auto de busca e apreensão de um livro. Por cima da mesa, na parede, estava a fotografia do ditador. A instalação foi montada na sala de leitura dos jornais diários por ocasião das celebrações dos 50 anos do 25 de Abril.

Para que ninguém se esqueça.

A próxima paragem foi na sala de leitura, que conta com um teto artesoado, de madeira de castanho, transferido de um seminário. para a Biblioteca Pública de Braga durante o Estado Novo. A estrutura é tão elaborada e tem um formato tão singular que custa a crer como foi levada para ali e como encaixou ali de forma tão perfeita. "Sempre que aqui venho, encontro uma coisa nova: mais um anjinho, uma folha com um formato diverso. Há sempre uma novidade", partilhou Márcia Oliveira. Após uma breve troca de ideias sobre a censura e a escuridão que encobriu Portugal durante a ditadura, avançámos para o Depósito, vedado ao público. E ali, entre milhares de livros antigos, era ainda mais intenso o delicioso cheiro a papel velho de que fala Maria Ondina Braga, a autora escolhida por Márcia e Elisabete para representar a Biblioteca Pública de Braga nesta Road Trip Literária.

Maria Ondina Braga, nascida em Braga a 13 de janeiro de 1932, um ano antes do início do período salazarista, foi professora, escritora, viajante e cosmopolita, vivendo uma vida distinta da maioria das mulheres da sua época em Portugal. A sua existência foi marcada pela solidão e independência. Nas suas obras, surgem personagens femininas que expressam tristeza e revolta, evidenciando diversas formas de submissão numa sociedade carregada de preconceitos, machismo e patriarcalismo.

Em Estátua de Sal, um exemplo: "A noite passada creio que cheguei ao extremo cansaço (...) Quando atirei os livros ao chão fiquei a escutar o estrondo que, ressoando nas paredes de madeira, rasgou de ponta a ponta o silêncio do corredor. (…) Mais longe, vagos passos, vozes. E eu no meio do quarto, de pé, a ver desmoronar a torre de cadernos, de compêndios, de dicionários. Eu hirta, arquejante, rebelde. Eu e a minha guerra. (...) Ah, minha infância escassa, minha mãe resignada, minhas andanças sem rumo, meu viver sem ambições! (...) Hora da libertação? Eis o derrubar da estante. As minhas ‘armas’ retumbando no sossego da casa."

Muitos anos passaram desde essa realidade. Hoje, vivemos outra bem diferente. "Sou uma privilegiada! Estou a trabalhar no sítio onde sempre quis trabalhar", confidenciou-me Márcia Oliveira, diretora da BPB há um ano. Elisabete Lago, por seu turno, é o exemplo de que, em liberdade, se pode mudar de ideias e de presente em qualquer altura: "Fiz uma licenciatura em Economia, mas quando chegou a fase do estágio, com os bancos e a banca, percebi que não era o que queria. E os livros sempre foram uma paixão. O meu primeiro emprego foi numa livraria e as minhas escolhas posteriores à licenciatura acabaram por trazer-me aqui."

Regresso a Maria Ondina, mais concretamente à sua escolha de, segundo palavras da própria, praticar a "vagabundagem pelo mundo".

"Palmilhei capitais europeias. Sonhei nas terras úberes de África os mais puros, os mais ardentes sonhos telúricos. Nasci numa cidade sossegada com pedras do tempo dos romanos e Nossas Senhoras de todos os nomes. E não posso esquecer Paris — a sedução, o charme de Paris, na grandeza dos Campos Elísios ou nas ruelas cosmopolitas e boémias de Saint-Michel. Tenho também de lembrar o perfil dos monumentos de Londres por entre os véus do nevoeiro ou o chuvisco gelado. Tenho também de confrontar Angola com Macau para saber que há sangue e saber que há sono. Mas, acima de tudo, quero encontrar-me comigo."

— Qual é a missão da Biblioteca Pública de Braga?

— Uma biblioteca com estas características tem de balancear sempre dois aspetos fundamentais: a divulgação e a preservação do património. É crucial garantir que as obras serão mantidas, preservando o património valioso que temos, o qual inclui, em muitos casos, edições raras. Precisamos assegurar que daqui a 100, 200, 300, 400 anos, este património continue disponível para as futuras gerações. Simultaneamente, é essencial que ele seja apropriado pela comunidade. De que adianta ter um palácio cheio de tesouros se a comunidade não usufrui? —, questiona Márcia.

— E para isso é preciso divulgar…

— Sim. E estamos a fazer esse trabalho, pois não nos queremos limitar a ser uma biblioteca para estudiosos eruditos. Os estudiosos são essenciais para revelar aspetos fascinantes das edições, mas é igualmente importante que os cidadãos comuns reconheçam o valor deste património e saibam que lhes pertence. Sem esse equilíbrio, a biblioteca perde o seu propósito —, reforça a diretora da BPB.

— Alguns dos nossos colegas mais antigos dizem que algumas pessoas, quando passavam à porta da biblioteca, pensavam que era uma igreja e até se benziam —, acrescenta Elisabete.

— E, na prática, como se faz essa comunicação?

— Cumprindo a missão tradicional de disponibilizar o património, os livros e as publicações periódicas, em diferentes formatos. Não se trata apenas do físico ou do digital, pois nenhum substitui o outro. A "morte do livro" foi muitas vezes anunciada, mas nunca se confirmou. Mas a verdade é que existem novas formas de apropriação do livro e temos de nos adaptar. A música, por exemplo, é património material e imaterial e está na biblioteca. E, depois, organizamos atividades dirigidas a famílias e ao público sénior, e o mais curioso que temos notado é o encantamento das pessoas quando visitam a biblioteca e descobrem tudo o que ela oferece. Ficam maravilhadas ao perceberem que podem requisitar livros e usufruir dos nossos serviços —, conclui Márcia Oliveira.

Na BPB, os livros são requisitados a pedido, não sendo possível retirá-los diretamente das estantes. Podem ser requeridas obras publicadas a partir de 1940, embora alguns, como exemplares oferecidos por autores com dedicatórias ou em mau estado de conservação, possam não estar disponíveis. Os livros publicados a partir de 1820 podem ser consultados na biblioteca, sendo que os anteriores exigem marcação para verificações, como o uso de luvas, ou a avaliação do estado de conservação — há casos em que a presença de um técnico é necessária para o manuseio desses documentos.

A visita terminou na Sala do Arcaz, onde se encontra um grande móvel arquivador em forma de "U" no fundo da divisão. Na parte frontal, existem seis portas na parte de cima e seis na parte de baixo, com seis gavetas no centro a separá-las. Nas laterais, encontram-se estantes cheias de livros antigos. A gaveta principal, onde está a chave para abrir todos os compartimentos do armário, apenas se abre quando três chaves são rodadas simultaneamente — antigamente, cada uma dessas chaves pertencia a um cónego. Cada porta contém quatro grandes temas (rendas, arrendamentos, multas, livros, testamentos, matérias inúteis, entre outros), totalizando 24. Ao abrir um par de portas, surgem mais dez divisões com detalhes específicos dos temas. Complexo? Não mais do que o sistema de abertura progressiva dos ficheiros num computador, onde os documentos são acedidos sequencialmente.

Foi nesta sala que folheei a primeira edição de A Mensagem, de Fernando Pessoa, um dos livros da minha vida, e a Enciclopédia do Mundo Natural, datada de 1491. O livro está dividido por secções — Plantas, Animais, Esqueleto, Minerais e Urina. Fiquei pasmado com as ilustrações e com o tanto que já se sabia há 513 anos. Passou-me pela cabeça: "Já está tudo inventado." Não será bem assim, mas é verdade que há muitas áreas em que não fazemos mais do que aprimorar aquilo que foi descoberto há centenas de anos.

Márcia folheou o livro centenário com luvas. "É sempre assim?", perguntei. "Na maior parte das vezes, sim. Todavia, já existem estudos que indicam que fazê-lo com a mão de vez em quando também contribui para a conservação."

Despedi-me com memórias incríveis e já uma ponta de frustração por saber o quanto ficaria por dizer nesta crónica sobre a Biblioteca Pública de Braga. Resta aceitar e seguir em frente. O que aqui leem é o meu testemunho de uma visita.

Finalizo com um outro testemunho sobre a BPB, revelado em Uma Descoberta e um Descanso, de Maria Ondina Braga: "Daí para o futuro: Onde estiveste? Estive na biblioteca. Podia finalmente frequentar essa instituição como frequentava o liceu e a igreja. Uma descoberta, para mim, a biblioteca, uma descoberta e um descanso. Havia, entretanto, crescido. (…) Eu, contudo, não mais desterrada no pátio fundo, um livro a furto nos joelhos. A descer a Rua do Souto, eu, a subir os degraus da Biblioteca Pública. Preenchia uma ficha, apresentava o bilhete de identidade. Aquele rigor. Aquele respeito. Eu, até então, clandestina. A minha carta de alforria. A minha remissão."

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​O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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