Adolescentes lêem em voz alta num livro para escutar
Cinquenta poemas, alguns canções, foram seleccionados por Oriana Alves, editora da Boca (Palavras Que Alimentam). Um conjunto heterogéneo de adolescentes deu-lhes voz. Leiam e oiçam.
A vontade antiga de fazer uma edição sobre cidadania para adolescentes levou a que a editora Boca reunisse meia centena de poemas no quinquagésimo aniversário do 25 de Abril. Foco: liberdade. “Mas ela aparece vista de muitos ângulos, tempos e lugares. Antes de mais, queria incluir poemas sobre o Estado Novo e a resistência à ditadura, mas também a emigração, a guerra colonial, a escravatura, porque sinto que a maioria dos adolescentes não tem essa memória histórica”, diz ao PÚBLICO Oriana Alves, depois do lançamento de A Liberdade não Cabe no Poema na Maratona de Leitura da Sertã.
No livro, podem ler-se e escutar-se (via QRCode) poemas de Adília Lopes, Alberto Pimenta, Ana Hatherly, António Gedeão, Fernando Assis Pacheco, José Carlos Ary dos Santos, José Afonso, José Mário Branco, José Gomes Ferreira, Manuel Alegre, Maria Velho da Costa, Miguel Torga, Natália Correia, Sérgio Godinho, Sophia de Mello Breyner Andresen, entre outros autores portugueses. Estrangeiros a cantar a liberdade são: Jacques Prévert, Adelaide Ivanóva, Mohammed El-Kurd, Shervin Hajipour, Margaret Atwood, Ferreira Gullar, Francisco Mallman, Nazim Hikmet e Rabindranath Tagore.
“Temos de fazer todos muito mais para que esse conhecimento e essa empatia não se percam, se não queremos que os jovens portugueses adiram a discursos antidemocráticos, belicistas e xenófobos”, continua a editora. E acusa “jornais respeitáveis, como o PÚBLICO”, de apelidarem “libertário a um tiranete sociopata como Javier Milei”.
Por isso, pareceu-lhe “urgente resgatar uma ideia de liberdade não fundada no individualismo, que oprime mais do que liberta, mas numa ética de justiça e solidariedade, de respeito pela comunidade, pela diversidade e pela natureza”. E conclui: “A poesia, quando se relaciona com a vida, faz isso com uma força inigualável.”
Para ela, não podiam faltar poemas sobre temas prementes do presente, “como as migrações, as questões ambientais e de género, e também testemunhos de outras partes do mundo, como o Irão ou a Palestina, onde a luta pela liberdade (e pela vida) é, de facto, ‘uma luta constante’”. Lembra que alguns dos poemas do livro se tornaram letras de canções, “tantas vezes mais ágeis a dialogar com a realidade do que a literatura”.
Oriana Alves conta que, para facilitar a entrada dos adolescentes no livro, ele começa no presente e vai recuando, passando pelo 25 de Abril e pela ditadura. São de adolescentes as vozes que lêem os poemas nos áudios associados aos QRCodes registados no final de cada título.
“Não houve casting de leitores, são familiares, filhos de amigos, filhos de amigos de amigos. E são prodigiosos. Não os trocava por nenhum dizedor profissional, porque, na sua naturalidade, e às vezes com sentidos inesperados, eles fazem os poemas acontecer. É realmente emocionante ouvi-los.”
A edição também contou com a colaboração de três alunos da Escola Leonardo Coimbra, no Porto, do Curso Profissional de Cozinha. “A ideia era que o grupo de leitores fosse heterogéneo. Penso que conseguimos”, diz, satisfeita com o produto final.
A dificuldade em escolher o que ilustrar
Satisfeito também está Mantraste, que teve dificuldade em escolher quais os poemas a ilustrar. “Por mim, tinha ilustrado todos”, diz ao PÚBLICO via email. Conhecia alguns dos textos, outros não. Caso do “Explicação do país de Abril”, de Manuel Alegre. “Não conhecia a história de que o poema tinha sido escrito antes do 25 de Abril e fiquei maravilhado. Mas não há nenhum de que não goste agora, foi mesmo muito difícil escolher quais ilustrar, a selecção está muito boa.”
Oriana Alves também se refere a este poema como exemplo da ampliação de sentido que o ilustrador dá aos textos: “A ilustração do poema ‘Explicação do país de Abril’, de Manuel Alegre, que, tal como a generalidade dos poemas de resistência escritos durante o Estado Novo, é um poema que só fala de homens, só se começa a falar de mulheres depois do 25 de Abril, à medida que as mulheres vão tomando espaço na literatura. E no desenho do Mantraste vemos uma fileira de mulheres cavando. É muito tocante essa sensibilidade do Mantraste e essa liberdade que ele tem para acrescentar ao texto.”
Para conseguir reduzir custos e facilitar o processo, o ilustrador decidiu usar apenas duas cores. “Limitações deste género ajudam a criar identidade nos desenhos e a tomar algumas decisões que fazem ganhar tempo”, descreve Mantraste, que desenhou tudo em quatro dias. “Pegava num poema de cada vez, criava a imagem e seguia para o próximo, nem esboços tinha. Agora, olhando para trás, acho que não podia ter sido de outra forma.”
Recebeu os textos com antecedência, mas não foi logo ilustrando. “Os poemas tinham de ser digeridos e ainda estava a aguardar que fossem todos confirmados. Quando voltei a pegar no livro a sério, o tempo já era curto e criou alguma ansiedade, admito. Era muita responsabilidade, não queria fazer imagens literais dos textos, queria que houvesse uma relação com eles, mas que nessa relação houvesse espaço para surgirem coisas novas.”
As cores escolhidas foram o preto e o verde. “É o contraste perfeito, o verde tem a esperança, mas também pode ser a náusea. E o preto dava tanto para o luto quanto para a revolta. Por fim, na ausência dos dois, surgia o branco do papel, que acabou por ser a cor mais usada”, diz Mantraste.
Oriana Alves não quer terminar a conversa com o PÚBLICO sem agradecer a todos os que participaram no livro, nomeadamente, “a Ana Sofia Marçal e ao Município da Sertã, por terem aceitado a proposta para esta parceria editorial, e a Rodolfo Castro, que foi um cúmplice e um consultor imprescindível desde a primeira hora”.
Pelo formato, pelas cores e pelos poemas, é um livro a que apetece voltar uma e outra vez. Escutar a voz dos jovens, com diferentes pronúncias e sotaques, acrescenta ainda mais emoção e sentido ao que é escrito e desenhado. São textos para semear memória.