Sertã: tropeçar na velhice e na poesia
“A menina devia era escrever sobre as coisas bonitas da Sertã”, diz-nos Fernanda, depois de levar o almoço a um homem de 94 anos.
Junto à Escola da Abegoaria, na Sertã, há um bairro de moradias de arquitectura e idade variáveis. Fernanda estaciona a carrinha perto de uma em bom estado. Sai e leva um cesto azul. Esperamos o seu regresso.
“Há 25 anos que tenho este trabalho, menina. Hoje, vim trazer o almoço a um senhor de 94 anos”, diz-nos. E acrescenta: “Agora, já são menos. Vou-me despedindo deles, mas é bom que fiquem em casa até ao fim. Se houver segurança.” Concordamos.
Antes de voltar a entrar na carrinha da Santa Casa da Misericórdia, ainda nos diz: “A menina devia era escrever sobre as coisas bonitas da Sertã: o convento, os jardins, a biblioteca, o artesanato.” Não a contrariamos, mas pensamos em como as periferias também nos dizem muito (ou mais) sobre os lugares.
Avançamos bairro adentro e as casas vão perdendo o aprumo, mas não as flores. Há sardinheiras, buganvílias, suculentas, tudo plantas resistentes. Um tanque de cimento para lavar a roupa serve de vaso a uma grande Aloe vera, também ela valente.
Aparece um ou outro prédio com três andares no máximo, varandas ferrugentas, fachadas descascadas. À porta, dois jovens tentam arranjar um carro verde. Capot aberto, um dá à ignição, outro olha para o motor. Nada.
Avançamos, saímos do bairro e vamos dar a uma recta com bastante comércio. À porta de um supermercado, tropeçamos na Poesia à la Carte, uma das actividades da Maratona de Leitura que ali se realizavam.
Entre o vasto cardápio de poemas e autores, a Chef Andantinni, da Andante Associação Artística, sugere-nos, por questões geográficas, Sebastião da Gama.
Integrado no Menu Satírico, serve-nos um “soufflé analfabeto”, iguaria retirada da obra Cabo da Boa Esperança. “Nasci para ser ignorante, mas os parentes teimaram… (e dali não arrancaram) em fazer de mim estudante (...)”, escutámos ao ouvido. Sorte.
Do outro lado da estrada, lojas como Catemtudo (assim mesmo, tudo junto e sem acento) e Embrulhar Mimos. Os nomes das lojas também dizem muito sobre as terras.
Faz-se tarde, percorremos o bairro no sentido inverso. Queríamos espreitar os estendais para saber que pessoas ali vivem. Se há bebés, jovens, operários. A roupa estendida deixa sempre adivinhar a natureza dos habitantes, mas só encontrámos molas coloridas alinhadas em arames vazios.
A escola era já ali. Os rapazes desistiram de reparar o carro verde e o homem de 94 anos estava à janela.
Pena não termos dito à Fernanda que escrever sobre ela também era uma coisa bonita.
Texto adaptado de um exercício da oficina de Escrita de Viagem, orientada por José Luís Santos na Escola da Abegoaria, durante a Maratona de Leitura da Sertã