Biblioteca Municipal José Baptista Martins – Vila Velha de Ródão: Ainda assim, pouco conhecia de si
Deslumbrado, virei costas ao curso de água para decifrar as palavras manuscritas na parede: “Fico cego com a paisagem, com o rio que passa sobre as pedras. Cego com o silêncio daquela ponte”.
“Não sabiam eles que todo o homem tem duas sombras, e que Deus e o diabo habitam no mesmo corpo, gladiando-se sem tréguas. Que, quando um parece levar a dianteira, o outro sublima-se e ultrapassa-o pelo flanco.”
José Manuel Batista, O Homem de Duas Sombras
Da varanda da Biblioteca Municipal José Batista Martins, em Vila Velha de Ródão, maravilhei-me com a caprichosa curva e contracurva do Rio Tejo, que aparece ao fundo, depois de uma curva cega de 90º à direita, para se estender e alargar, preparando nova curva de 90º, agora à esquerda, e desaparecer da vista de quem o espreita a partir desta casa de livros, histórias, pessoas, vida. Quem conhece a zona sabe que, dois quilómetros abaixo, o Tejo se estrangula numa garganta da serra do Perdigão, ocorrência geológica natural conhecida como as Portas de Ródão. Todavia, visto daqui, o Tejo é, aparentemente, um lago com contornos bem definidos.
Deslumbrado, virei costas ao curso de água para decifrar as palavras manuscritas na parede: “Fico cego com a paisagem, com o rio que passa sobre as pedras. Cego com o silêncio daquela ponte e com a presença dos xistos que escondem as casas. Cego com os cabelos e com os pássaros.”
Graça Batista, bibliotecária, desvendou que se trata do verso inicial do poema “Paisagem”, de Jaime Rocha, escrito em 2012 na estreia da residência literária “Poesia, Um Dia”, que desde então se realiza anualmente na Foz do Cobrão. O ceramista Pedro Gomes aproveitou para detalhar como deu forma às palavras inscritas na parede: “As letras foram modeladas a partir da caligrafia do autor num pedaço de papel onde ele escreveu o poema e depois passadas para uma pasta de cerâmica. A cozedura foi realizada num forno construído de papel de jornal e madeira que deixámos arder totalmente. Depois recolhemos as peças em cerâmica, que apresentam diferentes tonalidades.”
Simples, puro, bonito.
“O isolamento é o verdadeiro perigo. Não podemos deixar morrer a nossa terra. É a nossa identidade. Mas é uma batalha difícil, somos território de passagem”, expôs Graça, em frente a um expositor que onde estão em destaque livros recentes das mais variadas temáticas:
— Tem aí atrás de si uma bela coleção de livros.
— Pois tenho. São os nossos destaques, livros bons e recentes. São as pessoas daqui que os pedem. E são muito exigentes. Pedem romances, ensaios, poesia, atualidade. É sempre bom ouvir os leitores e perguntar o que gostam de ler em vez de supor o que gostam de ler. É preciso cuidado na construção das coleções. Nós temos uma proposta de aquisição que as pessoas podem preencher e, quando temos possibilidade, adquirimos. E, às vezes, estes livros com interesses muito específicos e particulares são bastante requisitados por outros leitores também.
— Quantas pessoas há em Vila Vela de Ródão?
— O concelho deve ter à volta de 3500 habitantes. É dos mais pequenos do país.
— Com tanto dinamismo e procura de livros, diria que os leitores de livros vieram parar todos aqui…
— Parece que sim! Descobri aqui pessoas que gostam muito de ler, que participam nos clubes de leitura e que nos trazem boas exigências. O resultado disso é uma biblioteca com imensa diversidade, o que dificilmente aconteceria se fossemos nós a escolher.
A aparência das coisas, de John Berger, é um dos livros em destaque. Desenvolvo um raciocínio em silêncio: seria de esperar que uma biblioteca longe dos grandes centros urbanos, num concelho com 3500 habitantes tivesse uma coleção tão rica e tantos e tão interessados e exigentes leitores? Aparentemente, não. No entanto, a realidade que encontrei em Vila Velha de Ródão confirma o óbvio: o interesse humano pela cultura e conhecimento não depende da localização geográfica ou dimensão da comunidade. É por isso que esta road-trip inclui bibliotecas de concelhos grandes e de concelhos pequenos.
“Porque é que são os adultos a escrever todos os livros para crianças se eles não sabem tudo sobre nós?”, perguntou Vicente Carmona, de 8 anos, a Graça. “É só estar perto deles e ouvi-los”, explanou a bibliotecária enquanto folheava uma espécie de livro — um conjunto de folhas A4 dobradas e agrafadas no meio —, escrito e ilustrado por Vicente. A obra começa assim: “Era uma… Não, espera, tu achavas mesmo que a minha história ia começar com era uma vez, leitor? Aqui tudo é diferente das histórias que conheces, e aqui a história é feita por mim, ou seja, a história é aleatória!”
Graça é uma apaixonada por dar voz aos outros. E também por ouvir. Falou-me do projeto “Escrita com Rasura” com um brilho nos olhos. Escrever e depois rasurar, uma ferramenta de enorme utilidade para quem precisa de explorar e deitar cá para fora o que sente através da escrita, mas que não quer de forma alguma que aquilo que escreve seja lido. Inesperadamente (ou não…), cruzo-me com uma das praticantes da “Escrita com Rasura”, que me revelou algumas páginas do seu caderno, onde há palavras rasuradas quase até ao rasgão. De permeio, mostrou-me alguns desenhos feitos para serem vistos por todos. “Estás muito melhor, não estás?”, perguntou-lhe Graça. O sorriso aberto da rapariga confirmou a expectativa da mentora. Abracei ambas. A face exposta da escrita como terapia. Apaixonante.
“Todo o ser esconde um drama, uma infelicidade silente que com o tempo se atenua ou implode. O limite para que resulte em tragédia está perigosamente guardado num pormenor, numa ínfima instigação”, escreve José Manuel Batista em O Homem de Duas Sombras.
— Fale-me do livro, José.
— Olhe, eu fiz muitas viagens a Paris quando era pequeno e vivi lá um período de quatro anos, de 1976 a 1980, pelo que conheço a cidade. Eu queria escrever um livro sobre uma viagem, mas não sabia bem que rumo seguir. Então, quando lia o livro Barranco de cegos, de Alves Redol, descobri um excerto que dizia isto: ‘Um homem tem duas sombras: uma do Anjo da Guarda e outra do Demónio. Moram as duas na mesma alma e ambas saem de lá, mas sempre separadas. Um homem nunca consegue adivinhar qual é a sombra que o vai seguir em cada minuto da sua vida...’
— E encontrou um rumo…
— Primeiro o título, Um Homem de Duas Sombras, depois o fio condutor, as memórias da minha infância, em que conheci a história de um rapaz que foi para um seminário, que se fez padre, mas que entretanto se apaixonou e largou o claustro…
— Não desvende! Eu já li, mas quero que outros leiam. Sem revelar muito, fale-me do percurso da personagem principal.
— O livro relata a viagem de um homem tanto no espaço, como ao seu interior. É um percurso existencial dramático e nunca sabemos se esse homem consegue sair desse inferno ou não. Nem eu, como autor, o sei. Deixei isso por conta dele. E acho que cada um de nós se pode rever nesta narrativa, pois nada há de linear ou de determinado nesta vida.
“Neste ponto, o mundo metamorfoseava-se. A temperança dava lugar ao descomedimento. Tudo o que aprendera e em que crera esfumava-se. O homem pensa ser senhor do seu destino e estanca a alma com diques morais, dogmas irrefutáveis que vogam nas águas estagnadas da certeza, construídos na argamassa da fé para que as religiões façam prova de vida e se perpetuem. Assim não é. Somos feitos de magma que nunca solidifica, esvai-se por terras fertilizadas de prazer. É o pecado a sua substância, a força motriz da sua vitalidade. Tal é o desígnio humano. (…) ‘Havia demasiadas vidas num homem’ – escreveu Agustina em Prazer e Glória – ‘para ele se entender consigo próprio.’ Luciano tinha percorrido caminhos erráticos e caído. Ainda assim, pouco conhecia de si”, lê-se em O Homem de Duas Sombras.
Aparentemente, sabemos quem somos, mas quem duvida de que há sempre curvas e contracurvas para conhecer? Volto à varanda para olhar o Tejo mais uma vez. Visto daqui parece mesmo um lago.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990