O que pensarão de nós os animais?
Que curiosidades lhes assomarão ao pensamento? Sentirão satisfação ao verem esclarecidas as suas dúvidas e inquietações ou ser-lhes-á indiferente?
Permaneci quieto, olhando a varanda, procurando entreter-me a decifrar as cores das roupas penduradas no estendal de parede: dois pares de calças azuis, umas mais claras do que as outras, um casaco cor de laranja, uma camisola de manga comprida verde e uma T-shirt amarela. Embrulhado nessa meditação, vi um gato preto deitar a cabeça fora do gradeamento. Fixei-lhe o olhar em busca de uma correspondência que não tardou a acontecer.
O bichano examinou-me com a curiosidade própria dos gaiatos atrevidos, intercalando uma trilogia de sorrisos: inquisidor, provocador e trocista. Assim se manteve até perceber que eu desmanchava o sorriso do primeiro instante e fechava o rosto. Vi-me ao espelho quando ele cerrou o focinho e franziu o sobrolho.
Pouco a pouco, senti aumentar a distância entre nós. Não a distância física — a varanda ficava num primeiro andar e nenhum de nós saiu do lugar —, mas aquela distância muito mais difícil de estreitar, produzida por um rosto fechado. Esta barreira invisível, erguida pelo silêncio e pela expressão, revela-se muitas vezes mais intransponível do que qualquer distância geográfica. Semelhante às relações humanas, em que um simples olhar ou sorriso pode rapidamente evoluir para desentendimento ou desprezo, comecei a refletir sobre as perceções do gato. Será que ele compreendia a súbita mudança na minha expressão? Seria possível que, à semelhança dos seres humanos, ele também sentisse o peso da desconfiança e da introspeção?
À medida que o encarava, perguntava-me o que aquele ser felpudo pensaria de mim, do meu olhar e da minha mudança de expressão. Depressa me vi assediado por perguntas ardilosas destinadas a me emaranharem em desassossegos: o que pensarão de nós os animais? Que curiosidades lhes assomarão ao pensamento? Sentirão satisfação ao verem esclarecidas as suas dúvidas e inquietações ou ser-lhes-á indiferente? Extrairá este gato alguma coisa da forma como o observo?
Ia nesta cogitação quando vi o gato preto desviar os olhos para a floreira à sua direita. Dirigi o olhar para o mesmo local, onde um pequeno pardal bicava as folhas de uma malva solitária. De onde estava, o gato via a malva a abanar, mas não o pardal. Aproveitando o instante em que nos voltámos a olhar nos olhos, fiz um rápido movimento ocular na direção do pássaro.
Estremecimento, rabo encaracolado, focinho de caçador, pulo, bater de asas, floreira pelos ares, gato sem paraquedas com rabo entre as pernas a fugir pela fresta da janela sem mais trocas de olhares ou aceno de despedida.