A culpa é da camisa!

Seria um infortúnio cromático que me afastava do galante conviva que me tinha cozinhado uma caldeirada com peixe acabado de sair do mar e que me servia com mordomias de restaurante estrela Michelin.

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Tinha usado aquela camisa da primeira vez, e agora voltava a usá-la Ilustração: RIta Lagarto
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A música toca na coluna portátil do meu terraço. Às vezes fico viciada numa música em particular. Não interessa de que género. Tanto pode ser o Inverno de Vivaldi como o Take me Out dos Franz Ferdinand. Por algum motivo naquele preciso momento da minha vida, uma certa melodia reverbera com uma intensidade particularmente penetrante, particularmente incisiva. Como se ocupasse um espaço do meu corpo onde a canção encaixa, milimetricamente, em conchinha com um qualquer sentimento radical que ela consegue segurar. Nessas alturas oiço-a repetidamente até à exaustão. Até a gastar. A espremer a última gota de cada nota, de cada nuance, a consumir a intensidade de cada frase, de cada bocadinho da música, até que ela se esgote. Até ficar saciada, até matar o vício. Como num filme em que a banda sonora precisa de tocar para dar intensidade à cena entre ELE & ELA.

ELE: Gostava de saber o que se passa dentro da tua cabeça…

ELA: Hum!?

ELE: Gostava de espreitar o que estás a pensar…

ELA: Para quê?

Olhos semicerrados dele. Silêncio desconfortável dela. A música toca. ELA = EU.

ELE: Gostava de saber o que estás a pensar, enquanto ouves esta música.

ELA/EU: Credo!

ELE: Credo?! Gostava de entrar dentro da tua cabeça. Só isso.

(Só isso!)

ELA/EU: Olha… Acho que não ias gostar. Acredita que o aspeto arrumado do hall de entrada não compensa a confusão no sótão.

Riso estridente dele. Silêncio desconfortável dela/meu.

ELE: Estás a ver? É por estas e por outras que me apaixonei por ti.

A música continua a rolar na coluna portátil do meu terraço. Por estas e por outras? Quais outras? Não havia “outras”. Não havia. Tínhamos estado juntos meia dúzia de vezes. Meia dúzia já sou eu a ser hiperbólica. Talvez não tivessem passado de quatro vezes. Quatro encontros que pareciam três: o primeiro não contava porque tínhamos bebido demasiada aguardente.

ELE: Queres namorar comigo?

ELA/EU: Ahhh!! Cuidado! Uma vespa asiática!

ELE: Onde?

ELA/EU: Aí! Não te mexas! Está no teu cabelo.

ELE: Hã? Onde?

Ele tinha corte de cabelo à Andre Agassi. Ou seja, não tinha cabelo.

ELA/EU: Não… Quero dizer, no cocuruto da tua cabeça. Espera! Quieto! Agora está no teu ombro.

ELE: Onde? Onde?

ELA/EU: Ali… Não… Do outro lado!

Quem nunca inventou uma vespa asiática para desviar um pedido de namoro desapropriado, que atire a primeira pedra.

ELE: Já voou?!?

ELA/EU: Espera é difícil de dizer, a tua camisa tem muitas cores.

Ele usava uma camisa às cores (muitas cores). Tinha usado aquela camisa da primeira vez, e agora voltava a usá-la, no quarto encontro (ou terceiro, sabe-se lá), por baixo de um casaco de ganga, exibindo uma salada de frutas de cores à qual eu não chamaria necessariamente harmoniosa, mas que ele parecia vestir com o orgulho de um caçador que ostenta a cabeça do alce pendurada na parede:

Cacei-a nos saldos da Zara! –, tinha dito ELE, com a pompa e glória de quem tem por certo que este é o tipo de observação que me faria tomá-lo por sensível, ademais um sensível frequentador da Zara, nada como esses brutos de antigamente que caçavam para se vestir.

ELA, ou seja EU, não tinha tido coragem, de o advertir que a particular mistura das cores laranja com verde me provocam uma espécie de náuseas, de stress-pós-traumático, neste caso enjoo-pós-traumático, que remonta a um dia da minha infância em que decidi armar-me em criativa gastronómica e misturei várias plantas que colhi no jardim da minha avó numa tigela com duas gemas de ovo e sumo de laranja, e sorvi a mistela alaranjada-esverdeada, com a crença de que resultaria na poção mágica em que Obélix caiu e o fez ficar mais forte. Resultado: lábios e língua inchada, cólicas abdominais, náuseas e vómitos. Como não disse a nenhum adulto o que tinha ingerido, fiquei preventivamente de cama uns quatro dias que pareciam três (o primeiro não contou porque estava sempre de cabeça enfiada na sanita).

Seria isso? Estaria assim explicada a minha resistência em aproximar-me do gentil Agassi que se desfazia em elogios sobre mim? Seria um infortúnio cromático que me afastava do galante conviva que me tinha cozinhado uma caldeirada com peixe acabado de sair do mar e que me servia com mordomias de restaurante com estrela Michelin, enquanto me despejava no copo um vinho de Reserva que comprara especialmente para mim enquanto referia a casta e o ano por extenso, o que para mim seria igual, de vinhos não sei nada (podia ter dito Panoramix 1992 e eu ficava na mesma). Seria da camisa?

Ultrapassado o sobressalto da vespa, fiquei a achar que o súbito pedido de namoro poderia não ter passado de um equívoco. Mas no encontro seguinte, fui surpreendida com um presente: umas botas de borracha, estilo Anita vai à Quinta, para passearmos juntos no campo enlameado ao lado da sua casa. Será que não tinha percebido que a Anita não é propriamente uma frequentadora da quinta? E porque é que já me estava a oferecer um objeto tão exclusivo, tão particular, tão prescrito, tão especialmente dedicado a mim, com uma fitinha vermelha, enquanto as botas dele tinham uma fitinha azul. Tão ELE & ELA!

ELE: Agora vais ter de as sujar!

Não me apetecia sujar. Tinha acabado de vestir collants de lavado, tinha uma saia de napa azul-prateada justinha que claramente não se adequava à quinta… Penso que provoquei um ataque epilético a umas quantas ovelhas. ELE: uma ternura. A assinalar o caminho, a desviar canas e ervas, a fazer-me evitar o estrume espalhado no campo, a mostrar catos que serviam para chá. E a levar-me por trilhos belíssimos na falésia com vista mar — mas que curiosamente nunca me pareciam tirar o fôlego, nunca me arrebatavam e me cansavam, porque me obrigavam a forçar o entusiasmo, quando só queria chegar a casa para me descalçar, cheia de bolhas nos pés, com caules nas expectativas!

Seria das botas?

Quando regressámos ele tinha preparado a lareira, e junto à lareira estavam umas pantufas novinhas em folha para eu ficar mais confortável lá por casa. A casa d’ELE. Num acesso de Cinderela invertida tentei enfiar as pantufas com esforço, mas não cabiam, não serviam…

ELE: Mas não calças o 38? Eu espreitei a sola dos teus sapatos…

…Uma gata borralheira com pés grossos.

Não assentavam bem. É que não gosto muito de pantufas, não gosto muito que me espreitem as solas dos sapatos, como não gosto que me espreitem os pensamentos, prefiro chinelos, e estas ainda tinham a etiqueta, não daria para trocar? ELA = EU = uma chata de primeira.

Seria das pantufas?

Tenho uma amiga que saiu durante meses a fio, com um par romântico extremamente cordial, gentil, bem-educado, sensível, culto. E que por acaso era médico dermatologista, o que era extremamente útil já que ela sofria de intensas alergias atópicas. Contudo, segundo ela, o médico falava constantemente com diminutivos… “Bom dia fofinha? Que tal irmos beber um cafezinho, e quem sabe comer um geladinho, naquele sitiozinho simpático perto da pracinha…” Aparentemente os diminutivos provocavam uma comichão no estado de espírito da minha amiga, que imediatamente inflamava. Saía de casa dele com a pele cheia de eczema. Podia dizer-se que era alérgica aos sufixos nominais. E apesar de parecer uma “coisinha” de nada, a relação nunca passou a namoro. Sempre que lhe pergunto, ela responde… “Eram os diminutivos!” Seria?

No sétimo encontro, ELE levou-me a passear com os cães. Apresentou-mos como quem me apresenta aos pais, queria que eu gostasse deles, queria que eles gostassem de mim, queria mostrar-me como era bom tratador, cuidador, mas os cães não paravam quietos. Eram dois pastores alemães, dois sogros machos de 45 quilos, maxilares proeminentes e dentes afiados, que puxavam por ele aos esticões, e ele não era propriamente robusto. Tinha levado um apito de adestramento, um apito daqueles que “não se ouve, é só para cães”. Mas ao primeiro sopro que ele deu no apito, eu ouvi o som, ouvi perfeitamente o “Piiii!” enquanto o via ser arrastado pelos cães que o puxavam pela trela, com ele de reboque a apitar “Piiii”. Durante o passeio…

ELE: Ana, sabes acho…

PASTORES ALEMÃES: Rrrrrrrr... Ão Ão Ão…

APITO: Piiiiiii!!!!

ELE: Desculpa… Acho….

PASTORES ALEMÃES: Rrrrrrrr... Ão Ão Ão… Rrrrrrrr... Ão Ão Ão…

APITO: Piiiiiii!!!!

PASTORES ALEMÃES: Rrrrrrrr... Ão Ão Ão… Rrrrrrrr... Ão Ão Ão…

ELE: Caluda!!!… Caluda os cães, não tu! Olha… Ana… Acho que estou a ficar mesmo apaixonado.

ELA/EU senti/u um arrepio. Mas não daqueles que se sentem quando se ouve o Inverno de Vivaldi. Era mais como quando a pele se arrepia porque as unhas raspam num quadro de ardósia. Ou quando se morde um dióspiro que ainda está verde e a boca fica toda áspera — a promessa de uma doçura que não está maturada.

Seria do apito?

Nessa noite, junto à lareira, enquanto eu me esforçava por não adormecer com o filme que estávamos a ver, ele lançou novamente a pergunta:

ELE: Queres namorar comigo?

Quantas vespas asiáticas podem aparecer, na mesma semana, na careca de uma pessoa?

ELE era cordial, gentil, bem-educado, sensível, culto. Tinha uma ligeira queda para camisas demasiado garridas, drogas leves e para a música ligeira, aquela Easy Listening, ou Chill out, ou Lounge Music, nunca sei bem como lhe chamar, aquele estilo de música que não aquece, não ferve, não preenche, nem sacia, fica só para ali, a tocar.

EU: Podemos trocar a música?

Se calhar era da música.

Ele encostou-se a mim delicado, a querer aproximar o corpo dele do meu, a encostar as orelhas às minhas, como quem encosta o ouvido a uma porta, para ver se ouvia alguma coisa do que se passava do outro lado, dentro da minha cabeça. Mas não devia ouvir grande coisa… Era só o ritmo da minha pulsação, da tensão normal, nem alta nem baixa. Enquanto procurava uma posição confortável e nos aninhávamos, ele agia como se fôssemos um casal, porque éramos dois. Mas não funcionava, porque uma duplicação de duas pessoas não é suficiente para fazer um par. Muito menos um casal. A música para ali, a tocar…

Sempre me pareceu indecifrável a razão pela qual uma certa música ressoa em nós e nos faz arrebatar, agitar, arrepiar… A reverberar num qualquer espaço do nosso corpo, como se encaixasse perfeitamente. Talvez o segredo não esteja na música, mas na forma dos pequenos espaços ocos que temos dentro de nós. Dos nossos pequenos vazios. Talvez seja mesmo uma questão de geometria. Simplesmente algumas formas não encaixam. Sobretudo porque as formas são feitas da mesma matéria intangível de que são feitos o sono, os sonhos, as gargalhadas, os arrepios, e estão sempre em movimento. Tudo aquilo que nos faz vibrar precisamente por não sabermos nem como, nem porquê. O que nos atrai não se explica, e por vezes até nos envergonha, nos desconcerta. A mim, pelo menos.

Passados uns dias, escorreguei na camisa colorida. Levantei-me estremunhada no meio da noite, abri a porta da casa de banho, pisei a camisa que estava estendida no chão ao lado do cesto da roupa e derrapei nas pantufas que ele tinha trocado, e agora eram dois tamanhos acima e me caiam dos pés, e bati com o nariz na torneira do lavatório. Soltei um “Piiii!!!”, os cães ladraram lá fora e eu decidi que tinha de sair.

Pensei: “É a camisa! A culpa é da camisa!”


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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