O Coração Ainda Bate. Um tamanho XL

Inês Meneses fala sobre a idade e a forma como nos aceitamos.

Esta semana reencontrei amigos que não via há muitos anos. Esse tempo, que nos distancia, pode ser um quase espelho que não nos mente, ao contrário daquele que, estando em casa, já acorda de acordo connosco.

O tempo que passou pode medir-se entre a frase entusiástica do “estás na mesma” e o desolador “nem te reconhecia”. Na verdade, nós queremos sempre ser reconhecidos pelos amigos, até por aqueles que ficaram 20 anos sem nos ver.

A vida, agora sei, é muito diferente quando partimos a medo para o que ela nos reserva ou vamos sem pensar e nos atiramos de frente, arriscando a cara esmurrada ou até os arranhões que não se vêem. Não me lembro muito bem de quem eu era quando teimei que havia de aprender a andar de bicicleta e, na escola, me lancei numa bicicleta emprestada, embatendo com grande violência num contentor de lixo. Lembro-me até hoje da sensação: de ir livre como se voasse e, de repente, ter o contentor à minha frente, percebendo que o choque ia ser inevitável. Bati, caí de frente, levantei-me e aprendi a andar de bicicleta. Não sei se foi dessa vez. Curiosamente é desse impacto que me lembro e do meio minuto de liberdade que vivi até cair.

Aprender a andar de bicicleta é uma metáfora que nos acompanhará para a vida: tentar, cair, esmurrar a cara. Tentar outra vez. (Falhar melhor, para lembrar Beckett). Perguntarmo-nos quando será o dia em que vamos conseguir? Saber que há quem lá chegue com rodinhas e outros que as dispensam, experimentando a adrenalina da queda inevitável. Chegamos àquilo que parece ser a metade da vida e percebemos que tudo desagua nas aprendizagens iniciais.

Era dos amigos que falava. Também eles, uma aprendizagem: vê-los ao fim de anos e dizerem-nos “estás na mesma”. Uma parte de nós não acredita, a outra envaidece-se, pensando que não se vai estatelar frente ao contentor. Há sempre o dia em que esse choque é inevitável.

Os amigos, no reencontro, vêm com tanto entusiasmo que não disfarçam o que têm pela frente. E se mudamos ou permanecemos quase os mesmos, é isso que vamos ouvir. Sem um véu a mediar-nos.

Estar igual é bom, mas nós sabemos de tudo o que mudou interiormente. Quando me dizem que estou igual, pergunto-me como não se vê toda a mudança que a vida precipitou em mim.

Esta sociedade, ainda rígida na forma como julga as mulheres, não nos deixa ser livres como julgamos que somos. Acho que sabemos que não somos e mentimos muitas vezes sobre isso. Magra, sem rugas e bem-disposta. Sem angústias relacionais, realizada profissionalmente, com filhos e um exemplo para as outras. É isto que o mundo espera de nós. O mundo do privilégio, porque do outro lado não há escolhas. Quantas destas mulheres não podem ser o que realmente são? Quantas querem parecer estar na mesma e quantas se dão ao luxo de aceitar os anos, os embates no contentor, as quedas e as tentativas?

Há um ano, no meio de uma tempestade autoimune, emagreci vários quilos. Lembro-me, nessa altura, de ter encontrado uma conhecida que me disse: “já vi que estás mais magra. Uma mulher não se pode dar ao luxo de engordar com a idade”. Fiquei a processar a frase, no meio de uma multidão. Foi um embate lento contra o contentor.

A minha mãe dizia, muitas vezes, uma frase de que gosto muito e que agora repito com prazer: “nem para ti és boa”. Eu acho que as mulheres, muitas vezes, nem para elas são boas. São, aliás, muito injustas. Quase nenhuma elogia outra porque a vê feliz, mas prefere enaltecer a sua forma física. Não estará na altura de mudarmos isto?

Vou confessar-me nesta página, esperando a absolvição que resulta da escrita: gosto muito de comer, beber, rir e festejar com os amigos e amores. Talvez esta alegria nem sempre caiba nos tamanhos de roupa desejados, mas precisamos, todos, urgentemente, de ser felizes. Às mulheres, sobretudo, que não lhes seja exigido que fiquem décadas “na mesma”. Aos homens, que as saibam apreciar em cada fatia da idade. Aos amigos que nos celebrem independentemente da forma.

Mais importante do que “estar na mesma” é, primeiro, estarmos felizes. A felicidade merece um tamanho XL.

O coração ainda bate

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