A missão da cardio-oncologia

É fundamental melhorar o seguimento cardíaco dos doentes oncológicos, permitindo que completem os tratamentos e impedindo que se tornem em doentes cardíacos de amanhã.

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A abordagem cardio-oncológica baseia-se no trabalho de uma equipa multidisciplinar especializada Paulo Pimenta/Arquivo
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Estima-se que mais de 60 mil portugueses são diagnosticados com cancro todos os anos. Mas, felizmente, há também notícias positivas: as novas terapêuticas para o cancro são cada vez mais específicas, eficazes e potentes, permitindo uma significativa melhoria da qualidade de vida e da sobrevivência destes doentes.

No entanto, estas terapêuticas estão frequentemente associadas a efeitos colaterais relevantes, entre eles a toxicidade cardíaca, a chamada “cardiotoxicidade”. Na verdade, as doenças cardíacas e o cancro estão intimamente correlacionados, constituindo as principais causas de mortalidade no mundo desenvolvido.

Partilham também múltiplos fatores de risco, incluindo a idade, o tabagismo, a hipertensão, a obesidade e o sedentarismo, existindo uma elevada existência de patologia cardíaca prévia no doente com cancro, a qual pode condicionar ou mesmo contra-indicar a escolha do tratamento oncológico. Verifica-se, ainda, uma maior incidência de cancro nos doentes com patologia cardiovascular conhecida, sendo que uma percentagem significativa das terapêuticas está associada a efeitos cardiovasculares adversos e a uma toxicidade cardíaca.

Felizmente, na maioria dos casos, quando é detetada e tratada precocemente, a cardiotoxicidade é reversível. Ainda assim, é uma das principais razões para suspender a terapia contra o cancro e pode levar a lesões irreversíveis. É neste contexto clínico e epidemiológico particular que surge a cardio-oncologia, uma nova subespecialidade da cardiologia que tem como objetivo cuidar do doente com patologia cardíaca conhecida ou em risco de a desenvolver antes, durante e após o tratamento do cancro.

Na prática, os seus objetivos passam por rastrear doentes com alto risco de cardiotoxicidade, permitindo a melhor resposta clínica e a adaptação individual do plano de tratamento oncológico, mas também detetar e tratar precocemente as eventuais complicações cardiovasculares, minimizando o risco de toxicidade irreversível — e, em última análise, evitando que tenha de se interromper o tratamento. Finalmente, procura-se realizar o acompanhamento clínico adequado aos doentes sobreviventes de cancro, para minimizar o aparecimento de doença cardiovascular a longo prazo.

A abordagem cardio-oncológica baseia-se no trabalho de uma equipa multidisciplinar especializada que engloba médicos em estreita e constante comunicação, incluindo o cardiologista de cardio-oncologia e o médico responsável pelo plano de tratamento oncológico, seja o oncologista, o hematologista ou o pneumologista, mas também outros profissionais de saúde, entre eles enfermeiros e técnicos de cardiopneumologia dedicados.

A consulta de cardio-oncologia deve garantir uma capacidade de resposta rápida, com uma avaliação clínica e a realização atempada dos meios complementares de diagnóstico considerados necessários, nomeadamente o eletrocardiograma, o ecocardiograma e o estudo analítico, que são pedras basilares da avaliação, adicionados a outros exames em determinados cenários específicos.

Neste momento, de uma forma genérica, considera-se que existe benefício de efetuar uma avaliação por cardio-oncologia em pessoas com história de doença cardíaca prévia e fatores de risco cardiovascular que possam ser sujeitas a terapêuticas com potencial cardiotóxico, mas também a doentes oncológicos que desenvolvem sintomas cardíacos durante o tratamento, para diagnosticar e tratar uma eventual cardiotoxicidade, definindo plano de seguimento e tratamento subsequentes. Esta mesma avaliação deve ser feita a sobreviventes de cancro, submetidos previamente a terapêuticas com potencial cardiotoxicidade, para despistar e tratar potenciais complicações tardias.

Em Portugal, existem várias consultas de Cardio-Oncologia que se propõem a cumprir estes objetivos, alterando de forma positiva o prognóstico cardiovascular e global dos doentes com cancro. No entanto, no presente momento, a cardio-oncologia ainda é uma subespecialidade em implementação.

A missão principal é muito nobre: melhorar o seguimento cardíaco dos doentes oncológicos de hoje, permitindo que completem os seus tratamentos e impedindo que se tornem em doentes cardíacos de amanhã. Para que esta missão se cumpra, urge investir na disseminação da cardio-oncologia entre a comunidade médica e na população em geral, assim como na melhoria ao seu acesso.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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