As palavras que não ouvimos

Muitas vezes, o trauma não está apenas relacionado com eventos específicos, mas sim com o vazio deixado por essas experiências não vividas.

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"Tudo o que vivemos na nossa infância define aquilo que irá ser a nossa personalidade no futuro" RDNE Stock project/pexels
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Quando abordamos o conceito de trauma, muitas vezes focamo-nos nos eventos específicos que causam dor e angústia, como o abuso sexual, experiências de guerra, bullying, violência doméstica ou negligência. Pensamos em momentos específicos ou em períodos de tempo marcados por eventos dolorosos que deixam uma marca indelével em nós. No entanto, o trauma não é apenas o que aconteceu a uma pessoa, mas também o que não aconteceu e devia ter acontecido. Pode ser sobre a ausência de certas experiências ou a falta de satisfação de certas necessidades. Muitas vezes, o trauma não está apenas relacionado com eventos específicos, mas sim com o vazio deixado por essas experiências não vividas.

O pequeno trauma que acontece ao longo do desenvolvimento da criança não se limita apenas a situações extremas de abuso ou negligência, mas também inclui a falta de certos cuidados emocionais e apoio durante a infância. Por exemplo, não termos tido colo quando éramos bebés, a falta de contacto visual, a ausência de sintonia emocional, a falta de validação ou a sensação de não ser visto ou ouvido podem ser experiências tão traumáticas quanto eventos óbvios de abuso ou negligência.

Pais sobrecarregados pelo stress do trabalho podem não ser capazes de regular as suas próprias emoções ou estar presentes para as necessidades emocionais dos filhos. Isso pode resultar numa desconexão emocional, subtil, mas significativa, que tem um impacto duradouro na vida da criança. Essas experiências deixam uma marca profunda na nossa mente e no nosso sistema nervoso, moldando a forma como nos relacionamos connosco e com o mundo à nossa volta.

É crucial reconhecer que, durante a infância, muitas vezes não conseguimos distinguir entre as nossas próprias dificuldades e aquelas enfrentadas pelos nossos pais. Se nos déssemos conta de que eles também têm dificuldades, isso poderia abalar a nossa estabilidade emocional, colocando-nos em completo terror. Por uma questão de sobrevivência psíquica, é mais seguro para nós acreditarmos que somos o problema, em vez de confrontarmos a ideia de que os nossos pais podem ser parte do problema. Ao condenarmo-nos e assumirmos que estamos perturbados, em vez de percebermos que os nossos pais também têm dificuldades em sintonizar-se verdadeiramente connosco e com nossas necessidades, perpetuamos mecanismos de defesa que persistem na vida adulta.

Reconhecer a disfuncionalidade dos nossos próprios pais pode ser doloroso para enfrentar, resultando em sentimentos profundos de não ser amado, não ser desejado, sentir-se sem valor, sem apoio, sem cuidado e/ou solitário. Quando isso acontece, a nossa personalidade torna-se orientada para a sobrevivência. As estruturas que criam a nossa identidade são moldadas de maneiras que nos ajudam a sobreviver à nossa infância. Por outras palavras, "quem somos" torna-se uma resposta ao trauma do que aconteceu e do que ficou por acontecer. A identidade é estruturada em camadas complexas de padrões de pensamento autoreferenciais baseados nos sentimentos profundos de dor e tormento mencionados anteriormente e essas estruturas dão-nos o nosso senso de self, tornando-se o crítico interno que muitos de nós experimentamos como adultos.

A voz dolorosa e condenatória na mente, que constantemente nos diz que não somos dignos, amáveis, e que algo está errado connosco, tem origem em experiências de infância bastante normais e comuns. Muitas vezes, não prestamos atenção ao que não aconteceu, e estamos mais focados no que aconteceu. Um evento destaca-se mais na nossa mente consciente do que a desconexão persistente e subtil que se desenrola nos bastidores das nossas vidas.

Raramente discutimos as coisas que não aconteceram, mas esses pequenos traumas são mais frequentes no nosso inconsciente, completamente fora da nossa consciência. No entanto, quando trazidos à luz da consciência, seja através de psicoterapia ou de outro método, podemos ver claramente que se manifestam como traços de personalidade, comportamentos e reações que temos connosco e com os outros à nossa volta.

Tudo o que vivemos na nossa infância define aquilo que irá ser a nossa personalidade no futuro. Coisas muito subtis e comuns do dia-a-dia, sem impacto, achamos nós, podem deixar marcas drásticas que orientarão a nossa forma de funcionar e de nos relacionarmos com o mundo para toda a vida.

Muitas vezes, estes padrões normalizados, ainda que disfuncionais, de comportamento e relacionamento, são passados de uma geração para outra sem que se perceba. Os traumas não resolvidos dos pais podem afetar a forma como criam os seus filhos, perpetuando padrões de comportamento prejudiciais. No entanto, ao reconhecer e abordar conscientemente esses padrões, é possível interromper o ciclo do trauma. Isso pode envolver terapia individual ou familiar, educação sobre saúde mental e apoio da comunidade. Ao trabalhar para compreender e curar o trauma passado, as famílias podem criar um ambiente mais saudável e nutritivo para as gerações futuras, promovendo assim um ciclo de cura e crescimento em vez de perpetuar o ciclo do trauma.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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