Ditadura: medo até de pensar

António Jorge Gonçalves recorda a infância durante a ditadura, quando na sala de aula todos viam outro António.

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O pequeno António não sabe quem é o ditador com o nome igual ao dele, nem sabe ainda o que é uma ditadura António Jorge Gonçalves
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“Calados, olham para a linha férrea de Entrecampos através da parede envidraçada. Vêem passar o comboio onde segue o caixão do ditador António Salazar” António Jorge Gonçalves
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“O ditador António decidiu fazer uma guerra, lá longe, em África” António Jorge Gonçalves
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“António não quer ir para a guerra, tem medo de morrer” António Jorge Gonçalves
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“A mãe de António também diz que ‘Uma mulher tem de se dar ao respeito’” António Jorge Gonçalves
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“O pai também diz que ‘As conversas cá de casa não são para fazer na rua’” António Jorge Gonçalves
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“Um dia, António acorda e alguma coisa está diferente. O pai não foi trabalhar e fala com a mãe, agitado. Alguma coisa está a acontecer” António Jorge Gonçalves
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Cada ilustrador da colecção MIssão: Democracia desenhou, desenhará em cada livro a forma como vê o Parlamento António Jorge Gonçalves
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Capa do livro Dita Dor, editado pela Assembleia da República para assinalar os 50 anos do 25 de Abril António Jorge Gonçalves
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Dita Dor é um livro autobiográfico. Há já uns anos que António Jorge Gonçalves queria escrever e ilustrar um livro em que falasse da sua infância. Algumas leituras sobre a vida das mulheres naquela época cimentaram essa vontade de “denunciar” com a sua própria voz injustiças, absurdos e medos no período da ditadura. O autor tem 59 anos.

Queria mostrar à minha filha o país triste e severo em que nasci”, conta ao PÚBLICO. E acrescenta: “O livro nasce da tensão de na altura não se poder fazer perguntas. A minha filha sempre pôde fazer perguntas. Quero que ela tenha consciência dessa grande diferença.” Recorda que os seus pais “só começaram a falar sobre muita coisa no pós-25 de Abril, viviam num espartilho”.

Por isso, sente-se “grato pela proposta” para integrar a colecção Missão: Democracia, editada pela Assembleia da República. “Ajudou-me a ter este foco.”

Inicialmente, sentiu “apreensão por ser um livro para miúdos”, lembra. “A questão com as crianças é ser directo nas coisas a contar. Ir ao osso…”, relata e fala de como “os constrangimentos (número de páginas, formato, público-alvo) fazem a obra”.

Valeram-lhe alguns conselhos da jornalista e escritora Susana Moreira Marques: “Ela disse-me: ‘A chave está no lugar onde te posicionas.’ E obrigou-me… a contar a história em 10 mil caracteres: ‘Escreve e não procures dar certezas’.” Resultou.

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“António acha que o ditador António não gosta que ninguém guarde coisas para si, nem sequer os pensamentos” António Jorge Gonçalves

A novela gráfica é contada na primeira pessoa, um miúdo de nove anos chamado António, nome igual ao seu e ao do ditador. “Sou aquele rapaz, coloquei-me na perspectiva daquele miúdo.” Recorreu a memórias pessoais e a outras que lhe foram contadas por vários familiares. Lembra-se de um jantar em que estavam nove primos: “Havia muitas versões diferentes para a mesma história.”

Dar uma visão da infância

O livro começa com a família à janela, em Lisboa. Pais, irmãos, avó e madrinha. “Calados, olham para a linha férrea de Entrecampos através da parede envidraçada. Vêem passar o comboio onde segue o caixão do ditador António Salazar.”

O texto é registado em cursivo, com a própria letra de António Jorge Gonçalves, o que remete também para a infância e ajudará na leitura por parte das crianças do 1.º ciclo. “Quis que fosse assim.” Boa opção.

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“Quando António nasceu, o seu país vivia numa ditadura. Quando os pais dele nasceram, também” António Jorge Gonçalves

Na parte da ilustração, fez por dar uma visão da infância, “nada naturalista ou neo-realista”. E diz ter seguido a premissa: “Coisas que a imagem não nos revela.”

Está certo de que quem o conhece vai vê-lo ali, mas também está receoso da opinião dos pais e irmãos, já que são personagens do livro: “Não tenho a manha literária da dissimulação.” Espera, portanto, uma espécie de “aprovação familiar”.

Em termos técnicos, o procedimento foi “desenhar com marcador analógico e aplicar a cor em computador”. A sua primeira versão era totalmente analógica, “mas era muito soturna, esta é mais leve”. A decisão de avançar com esta última foi tomada em conjunto com a filha, Miranda, 15 anos, aluna da Escola Artística António Arroio.

Felicita a colecção Missão: Democracia (que terá 12 títulos), dizendo que souberam “rodear-se das pessoas certas”. O livro foi lançado no passado dia 17 de Abril, no Palácio de São Bento, mas terá novas apresentações neste sábado, às 16h, na Biblioteca Municipal de Sintra, Casa dos Hipopómatos, e no domingo, às 16h30, no Penhasco, em Lisboa.

O também cartoonista e designer, que recebeu o Prémio Nacional de Ilustração em 2013 com Uma Escuridão Bonita (texto de Ondjaki, edição da Caminho), conclui sobre Dita Dor: “Tenho a sensação de esta ser uma das melhores coisas que já fiz.” É capaz de ter razão.

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