Muito riso, pouco siso
Com que tipo de balança se pesa a autoestima? Será que se comercializam em lojas de eletrodomésticos junto com os aparelhos de drenagem anti celulite, para ter no canto da casa de banho?
E se os Indicadores de Riqueza de uma População fossem medidos em Risos per capita? Gargalhadas Internas Brutas? Densidade de contração de músculos faciais por quilómetro quadrado? Eu e ela estaríamos certamente à frente no Ranking de Produtividade no capital do Riso. E não falo do Relatório Mundial da Felicidade, publicado anualmente pela ONU, nem da Felicidade Interna Bruta (FIB), o indicador mundial que estima a felicidade da população de cada país, e que, segundo averiguei, avalia o bem-estar de cada cidadão, medindo variáveis entre os quais: o otimismo, a autoestima, o nível de stress e a espiritualidade.
Fiquei a imaginar que instrumentos, ferramentas e aparelhos podiam ser usados para medir estes fatores… Com que tipo de balança se pesa a autoestima? Será que se comercializam em lojas de eletrodomésticos junto com os aparelhos de drenagem anti celulite, para ter no canto da casa de banho? E para saber o peso da minha autoestima, devo pesar-me nua ou vestida? Será que também tem aqueles sensores para medir a massa muscular e a matéria gorda? Para avaliar a gordura excedente, aquela gordura que não interessa na autoestima, ou o colesterol mau do amor-próprio? E depois? Haverá dietas para autoestima? Consumir melhores companhias, menos fotografias com filtros, mais amigos sem filtros…
Quanto ao nível de stress talvez seja uma variável mais fácil de calcular: multiplicando a quantidade de consultas que se marcam no osteopata, elevadas ao número de contraturas na coluna vertical, dores na cervical, nós do pescoço… Quantos nós tem no pescoço hoje? Sete?… Ah, Isso corresponde a um nível de stress mediano. Contratura na cervical? Subiu na escala de stress. Se chegar à dormência no polegar é porque entrou no nível máximo. Nível vermelho… Mas ainda não apresenta lesões estruturais na coluna. Já na autoestima… não se pode dizer o mesmo.
O otimismo, deduzo que seja matéria para se calcular com medidas de capacidade. Em litros, ou, antes, em mililitros, por ser mais escasso! Talvez os especialistas da ONU se dediquem a inventar suplementos em pó, para juntar a uma pequena porção de apenas alguns mililitros de otimismo. Ou isolar a massa-mãe-de-otimismo, à qual se adiciona farinha e água para confecionar mais otimismo a partir do pedacinho original. Otimismo em fermentação lenta. Otimismo biológico. Quem sabe! Já há suplementos para tudo! Uma alimentação mais rica em expectativas ilusórias e menos rica em carboidratos! Tenho esperança… Fiquei “otimista”!
Mas rir é outra coisa… Diz-se que o rir é o melhor remédio. Mas também se diz: pouco riso pouco siso. Talvez por ser embrenhado de tantas incoerências, o riso não possa ser considerado na equação oficial da Felicidade.
Talvez também porque a Felicidade não se equivale sequer ao riso, nem tão pouco ao bem-estar: essa soma impossível e absoluta de placidez, realização total, serenidade e tranquilidade, sem paixão nem inquietação, ou sequer uma comichão, por muito pequena que seja, que nos atormente. Essa imagem a que chamamos paraíso, que pode ser tão aborrecida como letal — e se calhar é por isso que normalmente a atribuímos ao fim eterno, e portanto sem vida.
Porque em vida, e antes do paraíso, cá convivem a tempestade e a bonança, o mau-estar e o bem-estar, o riso e o choro, as comichões e as paixões, as euforias no peito e as deceções nas costas, a doçura e a amargura, tantas vezes próximas, às vezes em simultâneo. Ao redor… A sede e o consolo, a beleza e o grotesco, a vontade e letargia, a melancolia e o ânimo, a dor e o vigor… E na soma, ou melhor, na sobra desta equação: a Felicidade! A parcela excedente, imprevisível, com um resultado sempre diferente, como numa conta imperfeita, mais poética do que aritmética, e inválida para efeitos estatísticos.
Não sei se há contadores de gargalhadas, como há relógios de pulso que medem os batimentos cardíacos, que contam os passos, que monitorizam a pulsação nas atividades diárias: em repouso, a caminhar, a correr… Eu, por exemplo, gosto de correr sozinha, mas gosto de rir acompanhada… E a verdade é que desde que eu e ela nos tornámos amigas o meu risómetro dispara com uma frequência diária constante. Com ela em particular.
E apesar da Felicidade, como a pulsação, parecer oscilar a ritmos inconstantes, desconfio que às vezes parece mais fácil de a auscultar quando acertamos a passada com outra pessoa... Nunca me pareceu simples determinar o que faz com que duas pessoas se liguem, cúmplices, e coincidam na pulsação na amizade. Que inexplicável partícula invisível e inacessível se encaixa, para além das afinidades óbvias, para que dois seres gravitem um para o outro, para que sintonizem na mesma frequência cardíaca, e se procurem na gestão dos opostos todos que se vão intrometendo na passada?
Nós as duas temos o riso a servir-nos de estrada… Nas corridas velozes, extenuadas, em subidas lentas, nas paragens súbitas, na apatia, em que parece que o coração se esqueceu, de bater, entre as nossas arritmias de Felicidade… Sabemos que o riso nos ampara, como uma espécie de tapete mágico que esvoaça sobre as chamas de um inferno-paradisíaco. O riso é para os tolos. E nós tolas rimo-nos. Do mundo, da vida, das falhas, de nós. Sobretudo de nós.
Quando ele morreu, liguei-lhe a ela. Liguei-me a ela. Ele era mesmo importante para mim. E tinha desaparecido. Subitamente. Num miligrama de segundo, numa partícula invisível e inacessível de tempo que é quanto basta para desaparecerem as coisas mais importantes.
Telefonei-lhe enquanto caminhava para longe de casa como se procurasse ficar mais perto do meu corpo. Com a cara contraída como se tivesse a rir. E quem me visse poderia achar que eu estava a rir à gargalhada agarrada ao telefone. Mas estava a chorar à gargalhada. Ao telefone. E ela, do outro lado, a chorar à gargalhada comigo… E porque às vezes a vida tem destas coisas, e os capítulos trágicos se sucedem uns atrás dos outros sem cuidado com o equilíbrio da narrativa, nem com o equilíbrio das protagonistas (a espiritualidade que fica curtinha, ou estica, não sei com que régua a medem os senhores especialistas da ONU), dois dias depois era ela quem perdia um bocadinho de si, da sua massa-mãe, para sempre, numa partícula invisível de tempo. Para sempre — a distância imensurável entre a Vida e a Morte.
“Puxa, este só pode ser o último episódio desta Temporada da nossa Série, amiga… A realizadora desatou a matar os ppersonagens todos. A ver o que acontece na próxima…” E rimos as duas. Com aquelas gargalhadas salgadas que deixam correr as lágrimas para dentro da boca, para nos lembrarem que somos feitos de água, que também escoamos e enchemos como as marés. A nossa galhofa podia até não nos garantir um lugar pódio do Desenvolvimento Sustentável da Felicidade, mas garantia-nos que estávamos juntas para fintar o desespero.
Estou parada à entrada das Urgências do Hospital de São José, em Lisboa. São duas da manhã e está um frio inverosímil para esta época do ano (mais um erro no roteiro). Sorvo o alumínio do invólucro de um Dr. Bayard como se fosse um cigarro. Não fumo, mas às vezes adorava ser fumadora: acender os problemas no cigarro, soprá-los no ar, como fazem os fumadores, vê-los atear na ponta dos dedos, calcar o que sobra deles no cinzeiro ou no chão, transformados em cinza.
Encosto-me à parede, enquanto espero que ela termine de fazer as análises, e fico a mirar o Segurança que fuma um cigarro verdadeiro, indiferente à entrada e saída de ambulâncias, ao sangue nas gazes empapadas, ao corrupio de homens e mulheres alcoolizados, sem abrigo, que se refugiam numa dor de dentes imaginária para ter guarida nas cadeiras da Sala de Espera, aos polícias que tentam conciliar a previdência com a autoridade, e a todo aquele sofrimento de quem sai com dores, com lutos súbitos, com somatórios de horas de espera. Caramba... Devia ser fumadora. “Tem um cigarro?”, pergunto ao Segurança. “Acho que este Dr. Bayard já se apagou…”
Por ironia, estamos de volta a este lugar, onde eu tinha entrado de urgência com um episódio de dor aguda (uma pontada nos rins, que tinha confundido com um “mau jeito provocado por excesso de exercício” e que afinal se revelou numa “ infeção renal provocada por melancolia-amorosa”). Tinha sido ela quem me acompanhara, precisamente na véspera do dia em que o Guião da nossa Vida tinha sido virado do avesso. Agora era sou quem a acompanha.
Ela sentiu uma dor brusca na cervical e está em observação. Pego desajeitadamente no cigarro que o Segurança me entrega e olho para o céu como fazem os não-crentes na hora da aflição, a invocar Hawkins, Darwin e Kaku, a imensidão e as constelações, e o que houver para além disso, a saber que não há-de ser nada de grave, que ela é saudável e ainda é mais nova que eu, e a pensar: “Mas que raio de maneira de começar o primeiro episódio da nova Temporada!”
A saber que quando ela saísse das análises, entre as náuseas, as dores e o susto, ia trazer três piadas novas para me fazer rir, sobre o risco no cabelo da enfermeira, o bolor nas paredes, o médico que parecia o guia turístico… E eu outras tantas, para lhe devolver. A rirmo-nos como duas hereges numa igreja, na Sala de Espera de uma madrugada do São José.
A enfermeira chama-me e eu acompanho-a ao gabinete médico. “Está tudo bem”, garante-me a médica, com a bata engelhada de cansaço, os croques estourados de tantas horas debaixo das pernas, com olhos vermelhos a descontar horas de sono. “Foi só um episódio de compressão do nervo cervical”, assegura, olhando na direção da minha amiga. “Tem andado stressada ultimamente?” Ela levanta a cabeça, frágil, olha a médica nos olhos. “Não!”, responde certeira.
Eu estou em pé diante da cena. Desato a rir. Da gafe, do engano, do blooper, do cenário no gabinete das Urgências que parece ser a fingir, mas é verdadeiro, do silêncio a seguir ao “não”, da falta de banda sonora, do excesso de cansaço, da ironia de tudo. E ela ri. Por contágio. Rimos as duas. A médica olha-nos com aquele sorriso de quem não percebeu a piada mas quer acompanhar, de quem quer ser contaminada, pelo riso. “Rir é o melhor remédio…” diz, tímida. Será? “Mas assim como assim, pode receitar uns quantos pacotes daqueles relaxantes musculares que nos metem a dormir a noite toda? Rir é um bom remédio mas Ciclobenzaprina também não é nada mau…”
Saímos das Urgências, amparadas uma na outra, depois de uma noitada, com a madrugada a querer despontar indiferente às histórias que se vão gravando no São José sem ninguém para as editar… O hospital ergue-se sobre a cidade, como uma espécie de capela ao cimo de uma eira. Detemo-nos por um momento a ver Lisboa que se deita aos nossos pés, como um gato, como um cão cansado. Abrimos dois Dr. Bayard como quem abre uma lata de cerveja. Fazemos um brinde com os rebuçados. “Quem ri por último é quem ri melhor”, ela ironiza. Não sei se rimos melhor. Mas certamente, juntas, rimos bem.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990