Enquanto tudo dorme
Eram cinco e meia da manhã, quatro e meia na hora de inverno, quando a vigília me falou: “Não há forma de voltares a adormecer”. Não insisti e levantei-me.
No magnífico Alguém Falou Sobre Nós, uma compilação de Ensaios sobre o mundo atual à luz da sabedoria da Antiguidade Clássica, de Irene Vallejo, encontrei um curto texto (como todos os deste livro) intitulado Enquanto tudo dorme.
Irene fala-nos sobre insónia: “A noite tem os seus náufragos. São essas pessoas que têm os olhos abertos na escuridão, antecipando o cansaço do dia seguinte, mas certas de que não conseguirão dormir mais. Na sua insónia, estão atentas aos ruídos, reconhecem a passagem das horas na intensidade das trevas, ouvem rádio ou levantam-se para darem uns passos mecânicos. Todos estes náufragos são parecidos, mas cada um se sente o único a quem deixaram sozinho no meio de uma multidão que descansa.”
A autora debruça-se depois sobre Estácio, poeta romano que, há pouco menos de 20 séculos, ao enfrentar “o desterro noturno da insónia”, encurtou a noite escrevendo uma oração ao sono: “Cala todo o gado, os pássaros e as feras, /e as árvores, reclinadas, simulam um repouso esgotado. / Diminui o estrondo dos rios bravos, amaina a corrente/da água, e os mares descansam, refastelados sobre a Terra. /A sétima Lua contempla como velam os meus penosos olhos.” “Como é que poderei resistir?”.
Eram cinco e meia da manhã, quatro e meia na hora de inverno, quando a vigília me falou: “Não há forma de voltares a adormecer”.
Não insisti e levantei-me. Pareceu-me melhor caminhar do que contestar e saí para a rua. O frio ditou o ritmo da passada: acelerada. Enquanto avançava, recordei um comentário que ouvira na véspera no barbeiro: “Esta noite, vão roubar-me uma hora”. Os meus pensamentos voltaram-se para os momentos de inocência e alegria que se perderam no tempo. Recordei rostos sorridentes de entes queridos que já partiram, lugares que chamamos de lar e aventuras que vivi sem medo do desconhecido. Foi como se as memórias da infância emergissem de um poço profundo, clamando por atenção. Dei-lhes atenção, claro, nunca se sabe quantas horas perdemos ou nos foram roubadas ou o que por lá ficou mal percebido e/ou mal explicado. E é dito e sabido que dívidas e roubos e coisas mal percebidas e/ou mal explicadas acabam por consumir-nos em silêncio, emudecendo gritos que precisamos de gritar.
O sol mostrou-se por entre as nuvens carregadas. Para mim, esteja onde estiver, é o mais belo dos cenários.
– Acordaste-me para isto, insónia? Muito obrigado – elaborei em voz alta, abrandando o passo para sorver o cenário. E o bom que é falar em voz alta quando ninguém, a não ser nós próprios, nos pode ouvir? Tem um nó na garganta? Um aperto no peito? Vá para longe e experimente falar (ou gritar), vai ver que os solta.
Procurei o meu nó. Nada encontrei. Acelerei o passo. “Quanto mais caminhamos, mais achamos” – pensei e disse em voz alta com a convicção de que tinha elaborado o meu primeiro adágio. Meia dúzia de passos adiante, recordei Richard Zimler, em A Aldeia das Almas Desaparecidas – A Floresta do Avesso: “Aquilo que consideramos belo está a tentar dizer-nos aonde precisamos de ir. E, se não formos capazes de entender essas indicações, podemos extraviar-nos de tal maneira que jamais conseguiremos achar o caminho de volta para nós próprios.”
Será aí que o tempo deixa de ser nosso? Será por aí que o perdemos? Quantas vezes se passam dias, semanas, meses, décadas, sem perguntarmos a nós mesmos se a forma como ocupamos o tempo é a que mais se adequa à nossa condição, prioridades e sonhos?
Um texto cheio de citações, termina com mais uma:
“Comporta-te assim, meu Lucílio, reivindica o teu direito sobre ti mesmo e o tempo que até hoje foi levado embora, foi roubado ou fugiu, recolhe e aproveita esse tempo. Convence-te de que é assim como te escrevo: certos momentos nos são tomados, outros nos são furtados e outros ainda se perdem no vento. Mas a coisa mais lamentável é perder tempo por negligência. Se pensares bem, passamos grande parte da vida agindo mal, a maior parte sem fazer nada, ou fazendo algo diferente do que se deveria fazer. Então, caro Lucílio, procura fazer aquilo que me escreves: aproveita todas as horas; serás menos dependente do amanhã se te lançares ao presente. Enquanto adiamos, a vida se vai. Todas as coisas, Lucílio, nos são alheias; só o tempo é nosso”, elaborou Séneca, filósofo romano do séc. IV a.C., numa carta ao seu amigo Lucílio, denominada Da Economia do Tempo.
O domingo foi acordando lentamente. Houve perguntas que ficaram sem resposta – se é que as há. A explorar numa próxima insónia.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990