A democracia não se esgota num dia de eleições, mas há dias que contêm em si a essência da democracia.
Não escrevo hoje sobre eleições ou primárias, mas sobre uma extraordinária experiência de democracia directa que se desenrola desde o século XVII no Nordeste dos Estados Unidos.
No Vermont, a cada primeira terça-feira de Março (ou, excepcionalmente, no fim-de-semana anterior), os habitantes de cada localidade, pequena ou grande, reúnem-se em assembleia e deliberam directamente, sem intermediários eleitos, sobre o orçamento e impostos locais, e sobre outros assuntos e resoluções.
Podem fazê-lo através de boletins de voto, mas o formato mais tradicional e frequente é com um aye (sim) ou um nay (não) dito em voz alta, em reunião num pavilhão municipal, numa escola ou numa igreja. Todos os moradores com capacidade electiva podem participar. É o town meeting day, tradição democrática comum a outros estados da região, como o New Hampshire e o Maine, e que mereceu a atenção e o elogio de Alexis de Tocqueville em Da Democracia na América.
Assisti, na semana passada, ao town meeting de Monkton, uma pacata vila rural de dois mil habitantes nas encostas das Montanhas Verdes do Vermont, cujos donuts e gelados artesanais, maçãs e trilhos florestais já chegaram à atenção do New York Times. No ginásio da escola local, uma centena de moradores dispensou uma manhã de sábado (Monkton é uma das localidades que antecipou a reunião) para discutir o orçamento local, a avaliação dos seus imóveis, os custos com os professores (extraordinariamente inflacionados pela ausência de um sistema público de saúde, o que obriga o empregador a pagar um seguro privado), o estado das estradas, o financiamento dos bombeiros e de várias associações ou a eleição do pequeno comité que funciona como autoridade autárquica o resto do ano.
O debate é sereno e civilizado, adoçado pelas bolachas oferecidas à entrada (consta que o menu é mais variado noutras cidades, onde a ocasião é aproveitada para demonstrar dotes culinários, mas não tive essa sorte). Não há grande espaço para batalhas ideológicas quando se olha para algo tão concreto como um buraco na estrada. Há um problema, haverá uma solução, essa solução terá custos – agora decida-se, em comunidade. As contas estão todas num espesso caderno que é enviado, semanas antes, para cada um dos moradores.
No fundo, é como uma grande assembleia de condomínio. Pelo menos ali, em Monkton, Vermont – noutras localidades, há quem aproveite o town meeting day para apresentar e votar resoluções com outra pompa e alcance, desde declarações de emergência climática à condenação da violência no Médio Oriente.
O town meeting day tem sido uma das fontes de inspiração para algumas experiências de democracia participativa ao nível local, incluindo em municípios portugueses – sobretudo quando acontecem no seu formato mais genuíno, em assembleias e reuniões abertas a munícipes, com capacidade deliberativa, e não quando são limitadas a meras votações online entre meia dúzia de projectos candidatos a entrar num suposto “orçamento participativo”.
É, ao mesmo tempo, um assunto para cabeças grisalhas. A olho, estimaria que a média de idades naquele ginásio escolar em Monkton superava os 65 anos. E aí não difere muito de uma assembleia municipal em Portugal ou de outro momento ou instrumento democrático que vá além do depósito de um boletim de voto numa urna de quatro em quatro anos. Quem participará nos town meeting days quando os grisalhos partirem?
A participação dos jovens na política é assunto recorrente nos dois lados do Atlântico. Questiona-se porque votam menos, discute-se que são necessários mais jovens nas listas partidárias, publicam-se manifestos pela abertura dos espaços de comentário político às novas gerações – com razão, diria.
Mas a democracia não se limita às eleições nacionais e aos grandes fóruns de debate. Começa numa rua, num bairro, numa aldeia, em redor de um buraco na estrada ou do orçamento para a biblioteca. Sem glamour ou mediatismo, mas por vezes com tanto ou mais impacto em vidas reais do que horas de debate sobre arquitectura de coligações ou sobre genealogia ideológica.
Ainda há quem se ocupe disso, de buracos, bibliotecas, escolas e bombeiros, numa manhã de sábado ou numa noite de terça-feira. Mas, tal como no voto, não basta confiar que haverá sempre alguém que decidirá bem por nós.