António Oliveira e o berbigão como nunca vimos e nunca comemos
Se alguém conhecer um berbigão tão gordo, tão aveludado e tão saboroso como aquele que o mariscador apanha na lagoa de Albufeira que se acuse.
Em matéria de bivalves e mariscos os portugueses dividem-se em três categorias: os que tremem de felicidade só de pensar em camarões, amêijoas, percebes ou sapateiras; os que não percebem por que razão se paga o couro e o cabelo por coisas que sabem a um pirolito de água salgada e, por fim, aqueles que se intrigam com tudo isto, mas que gostariam de estudar o assunto porque isso dos mariscos, dos seus terroirs e espécies que parecem fotocópias umas das outras mas que na realidade são diferentes e têm muito que se lhe diga. É o nosso caso. Aliás, pensamos mesmo que seria pertinente a criação de uma licenciatura em mariscos.
Temos amigos que juram pela honra dos seus que os melhores bivalves deste mundo são as amêijoas e outros que garantem que nada bate o berbigão. Nós, que somos só curiosos, estamos com estes últimos: quais amêijoas, quais quê, o berbigão é que é. Por causa da intensidade e finura do sabor marinho, por causa da simplicidade de preparação e por causa do aproveitamento que fazemos dos sucos que resultam da abertura rápida dos bivalves.
Por regra, o berbigão que consumíamos — e que na região de Aveiro/Bairrada dá pelo inusitado nome de cricos — era, digamos assim, de um calibre mais ou menos padronizado, à volta dos 2,5 centímetros de diâmetro. Ora, por estes dias, descendo a Avenida Guerra Junqueiro, em Lisboa, deparámo-nos com um saco de berbigão tão XXL que desconfiámos. Peças com uns 3,5 centímetros. Como nunca tínhamos visto coisa igual, fizemos perguntas ao Ricardo Diz, da loja Sal, Marisco & Companhia. Este, com aquele ar tranquilo e esperto, disse: “Leve o berbigão, se não gostar, não paga; se gostar fazemos contas.” Dias depois regressámos para fazer as tais contas e perguntas sobre quem lhe arranjava semelhante coisa.
Os bivalves têm as suas esquisitices. Por questões de segurança alimentar, os moluscos são comercialmente identificados com o nome da empresa que os depurou. E ainda bem que as coisas são assim, porque é isso que impede dormirmos um ou dois dias na casa de banho. Não devemos consumir bivalves que não tenham selo de depuração. Contornar esta regra é uma estupidez. Ponto.
Ora, depois de termos chegado à fala com António Marques, da Mecomar — uma das maiores depuradoras do país, no concelho de Sesimbra —, marcámos encontro na lagoa de Albufeira com o mariscador responsável pela captura dos berbigões de grande calibre para a Mecomar. António Oliveira tem 66 anos e mergulha entre o Tejo e o Sado na apanha de berbigão, amêijoas de várias espécies e lingueirão oceânico há 39 anos.
Natural de Setúbal e com queda para a cozinha — “A preparação dos berbigões tem de ser feita em tachos largos para que não haja acumulação e a abertura dos bivalves seja uniforme, muita atenção a isso” —, António é daqueles homens do mar que estuda os assuntos. Apesar de ser crítico da gestão da ligação da lagoa de Albufeira com o mar e do processo de eutrofização em curso, Tony — assim é conhecido pelos amigos — explica-nos que “a qualidade do berbigão desta lagoa deve-se à riqueza de micro e macroalgas e ao equilíbrio entre a salinidade e a água doce de desagua aqui, que fornece matéria orgânica importante para a alimentação dos bivalves”. “Já apanhei aqui berbigão com 50 gramas.”
E isso leva-nos já à descrição sensorial do berbigão que Tony apanha para a Mecomar. Sim, é um berbigão de grande calibre de concha, mas com o molusco bonito, muito gordo, cheio, aveludado, firme, mas com textura suave (nada aborrachado). Em termos de sabor, destaca-se pelo equilíbrio de salinidade e doçura, coisa que nos pareceu inusitada. Mas, lá está, o mariscador defende que isso é assim por causa da tal entrada de água doce na albufeira (via ribeira de Aiana a norte), coisa que, como se imagina, depende do ano climático.
No dia apalavrado na lagoa de Albufeira, António estava a sair da água com 70 quilos de berbigão, depois de seis horas de trabalho em apneia a uma altura de mais ou menos dois metros. Seis horas dentro de água, nesta altura do ano, não é arriscar um bocadinho? “Agora, nem tanto, que a temperatura já está aceitável, mas, em Janeiro, com a água entre 5 e 7 graus, já tive que sair da água por estar à beira da hipotermia”, refere o mariscador, que faz questão de dizer que só se dedica à apanha de berbigão de calibre grande e médio por causa da gestão dos stocks. “Apesar de não haver problemas com a espécie é preciso gerir as capturas, por forma a que não haja desequilíbrios e que isto se mantenha para outras gerações.”
António Marques gostaria de poder apresentar berbigão deste calibre durante todo o ano, mas o bivalve da lagoa de Albufeira só existe nesta versão XXL no primeiro trimestre do ano, que é quando um conjunto de factores físicos e bioclimáticos se juntam para dar bom alimento aos moluscos. Quando se rompe o dique de areia e a lagoa comunica com o mar — tradicionalmente pela Páscoa —, o berbigão passa a crescer mais devagar. E, lá para o Verão, são os turistas que tratam de o apanhar nas margens da lagoa.
De maneira que quem quiser comer berbigão como deve ser tem que se apressar. Aberto singelamente num tacho durante dois ou três minutos, num arroz que cozeu com a água da abertura dos moluscos, à Bulhão Pato ou como lhe apetecer. É só puxar pela imaginação.