Um bom cozido depende da alma de quem faz o seu próprio fumeiro

Num cozido barrosão o que interessa é a alimentação dos porcos e o amor que se dedica à preparação das carnes. Na Casa da Avó Chiquinha não há uma única peça que não seja preparada por Lina.

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Na Casa da Avó Chiquinha não há uma única peça que não seja preparada por Lina. Nelson Garrido
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Ai a raça do porco, ai a comida do animal, ai a lenha, ai o tempo de fumo, ai o respeito pelas receitas, ai a geada nas couves, ai as batatas Kennebec, a abóbora e o nabo. Ai isto, aquilo e aqueloutro. Os ais nunca mais acabam, mas, apesar de cada item ter o seu papel (com destaque para alimentação dos animais), é preciso registar desde já um primeiro mandamento: a qualidade de um cozido à portuguesa depende sempre — mas sempre — da alma de quem o prepara. E a alma de Idalina Garcia Gomes (Lina para os amigos) tem a extensão da paisagem que se avista da torre mais alta do castelo de Montalegre em todas as direcções. Alma com sabedoria, com história, com respeito pelas tradições, mas aberta ao que vem de fora e, acima de tudo, uma alma que rejubila com aqueles que se sentam à sua mesa: filhos, noras, netos e os amigos destes. No projecto turístico Casa da Avô Chiquinha, em Montalegre, a mesa que Lina prepara é uma festa, é um palco e uma homenagem à arte do cozido.

Entre as muitas manias do produtor de vinhos do Douro Abílio Tavares da Silva (vinhos Foz Torto), uma delas é juntar amigos à volta de produtos de excelência que muita gente nem conhece ou valoriza (tomate coração-de-boi, cornelhos ou uns caranguejos da Terra Nova). O cozido é só mais um pretexto, de maneira que todos os anos Abílio faz de mordomo e organiza uma excursão ao Barroso. De início, na freguesia de Padornelos, nos últimos dois anos em Montalegre, na Casa da Avó Chiquinha, criada por Lina e Francisco, pais de Paulo e Francisco Gonçalves (vinhos Montalegre). O objectivo é praticar um desporto nacional com amigos de diferentes proveniências: comer, beber, aprender, contar e ouvir histórias, rir (muito) e zaragatear (mais ainda). Um luxo.

A ementa do cozido barrosão da Avó Chiquinha – que só ocorre por encomenda – é tão intensa que o mordomo Abílio achou que seria mais avisado dividi-la em dois momentos. Um primeiro, às 11h, dedicado às entradas, e outro, a partir das 13h, com o cozido propriamente dito. Pelo meio, um passeio didáctico e profiláctico a uma das vinhas mais altas do país (1070 metros), do universo vinhos Montalegre, vinha esta cuja colheita de uvas depende em grande medida do apetite dos estorninhos em bandos que vivem nas redondezas durante a vindima. No Barroso, a partilha é uma imagem de marca.

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As alheiras (que nos fazem duvidar do que comemos por aí com esse nome) Nelson Garrido

Assim, na primeira parte entram as alheiras (que nos fazem duvidar do que comemos por aí com esse nome), chouriças, chouriços de abóbora (coisa genial e típica do Barroso), salpicão, presunto e rojões. Calhando, pode também aparecer fígado grelhado e sarrabulho. Num registo mais galego põe-se na mesa uma terrina de grão com callos, que o mesmo é dizer um estufado de grão-de-bico com dobrada (barriga de vitela e de porco), mãos de vitela e pedaços de chouriça. Mas, como veio cá parar? “Bom, isso é porque uma senhora de Montalegre que era casada com um senhor da Galiza gostava muito da tradição dos callos e nós decidimos introduzi-los na parte inicial do nosso cozido. Não faz parte da tradição, mas nós gostamos e achamos que o prato fica muito bem”, refere Lina à Fugas.

Quanto ao cozido em si —​ e enchidos à parte — o destaque vai para as carnes salgadas, em particular para a cabeça fumada do porco, que nos dá faceira, orelhas e focinho. Depois, alguma costela de porco, ossos da assuã (a parte rara e mais saborosa da festa) e carne de vitela. Morcela, chouriços avinagrados e farinheiras, nada disso existe por aqui.

Claro que temos as batatas Kennebec, que são extraordinárias em matéria de textura e sabor (absorvem muito bem os caldos), as couves pencas que apanharam geada (ficam mais doces) e cenouras. Para carregar na gulodice, há sempre arroz de feijão com grelos, que deixou muitos convidados de cabeça perdida.

Com excepção do chouriço de abóbora, dir-se-á que estamos perante um cozido que até é singelo, por comparação com cozidos de outras regiões, mas o que se destaca aqui é a intensidade de sabor de cada peça em si. A intensidade de sabor e o nível de fumo no geral, que é bastante moderado. Aliás, depois de um dia de conversas com Lina, notamos que não se referia à fumagem das carnes e dos enchidos, mas sim à secagem. Pergunta para aqui, pergunta para acolá, eis a resposta. “Pois, é secagem porque o fumo serve para isso mesmo, para secar as carnes e não para dar cheiro a fumo às peças. Pelo menos é assim que eu faço.”

Lina aprendeu a fazer fumeiro e cozidos com a mãe, em Vilar de Perdizes, numa casa com cinco irmãos. E como fazer tudo de raiz para um cozido dá uma trabalheira que um citadino nem imagina, o cozido esteve sempre associado a festa. “E isto não mudou nada porque, hoje, quando vejo aqui a minha família ou os amigos dos meus filhos naquela mesa cheia, eu chamo a isso uma festa. Dá muito trabalho? Pois dá, porque fazer as coisas com amor demora muito, mas é uma alegria ver a felicidade na cara deles.” Uma alegria que, já agora, começa em Montalegre e pode acabar em Londres porque um neto mais velho —​ o Guilherme —, a trabalhar numa consultora financeira em Inglaterra, passa mal sem carnes frescas e o fumeiro da avó. “Eu mando-lhe tudo. Até presunto vai nas malas. Só não vão as couves e as batatas. De resto vai tudo.”

Idalina Garcia Gomes (Lina para os amigos) Nelson Garrido
Idalina Garcia Gomes (Lina para os amigos) Nelson Garrido
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Idalina Garcia Gomes (Lina para os amigos) Nelson Garrido

De acordo com Lina, “a qualidade das carnes e dos enchidos deve-se, em primeiro lugar, à alimentação dos animais (mais importante do que raça) porque uma alimentação à base de vegetais dá origem a uma gordura saborosa e delicada, capaz de ligar bem a composição dos enchidos. Isso é muito, muito importante. Depois, o resto faz-se com muito amor, rigor e com a ajuda das minhas Bimbies.” Bimbies..., mas quais Bimbies? “Ah, são os meus potes de ferro, o que é que havia de ser?

Esta questão do amor é um clássico na cozinha, mas, em rigor, é amor e paixão, que só se percebe quando se escuta quem faz bem as coisas. No dia 20 de Janeiro, um grupo de 20 pessoas começou a comer fumeiro às 11h e acabou os trabalhos quando o sol estava a pôr-se. Três resistentes deixaram-se ficar e, pelas dez da noite, regalaram-se com uma sopa de cebola preparada por Bela, nora de Lina. E lá estivemos umas horas a ouvir Lina, Francisco e Bela a dissertar acaloradamente sobre cortes e pratos que se faziam antigamente a partir do porco (bola de unto, por exemplo, que servia para temperar sopas em terra onde as oliveiras não resistem ao frio).

Às vezes ocorre-nos fazer um tratado sobre os cozidos portugueses, mas é uma ideia que dá depressa e passa rápido. Duas vidas não chegariam para se fazer a coisa como deve ser.

A única peça que Lina vende é a alheira, que merece ser provada. Cada quilo custa 17€.

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