24 guardiães dos sabores e saberes de Portugal

Ao longo do ano, damos muitas voltas pelo país, seguindo sabedorias e tradições. Entre tomate-coração-de-boi, flor de sal, azeite, algas, vinho, peixe, e mais, temos muito a aprender com estes mestres

fugas-portugal,vinhos,gastronomia,fugas,portugal,agricultura,
Fotogaleria
Os irmãos Francisco e António Pavão são a oitava geração dos fundadores da Casa de Santo Amaro, em Mirandela Paulo Pimenta
fugas-portugal,vinhos,gastronomia,fugas,portugal,agricultura,
Fotogaleria
Vinho de talha, chouriços e as leis do Alentejo: João Carraça explica DR
fugas-portugal,vinhos,gastronomia,fugas,portugal,agricultura,
Fotogaleria
O fumeiro de Aldina Barroso e os seus "porcos felizes" Paulo Pimenta
fugas-portugal,vinhos,gastronomia,fugas,portugal,agricultura,
Fotogaleria
Viticólogo da Quinta das Carvalhas há 26 anos, Álvaro Martinho Lopes fala do Douro como um território encantado nelson garrido
Cozinha do Minho
Fotogaleria
José Dias, defensor do receituário de Braga e do Minho Nelson Garrido
,champanhe
Fotogaleria
Mário Carrasco apostou no figueiral e faz figos de calda únicos Guillermo Vidal
Fotogaleria
José Azoia produz grao-de-bico e outras leguminosas de variedades portuguesas, semeadas entre o Ribatejo e o Alentejo Rui Gaudencio
Fotogaleria
Rui e Vasco Martins, defensores do terroir de Mêda Nelson Garrido
,Gastronomia
Fotogaleria
Adriano Ferreira, dono e cozinheiro do restaurante A Praia do Tubarão, especialista em ensopados e caldeiradas de peixe Paulo Pimenta
Fotogaleria
Rute Cristóvão, especialista na doçaria tradicional mas adaptada: sem glúten nem lacticínios Guillermo Vidal
Ouça este artigo
00:00
14:09

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Hão-de ir parar ao fumeiro (e não só), mas enquanto cá estão são “porcos felizes”. Aldina é uma das guardiãs do fumeiro de Trás-os-Montes em Boticas, Aprendeu com a sogra, fazia para a família, mas agora são à volta de seis mil alheiras em cada temporada. Juntando as chouriças e os salpicões, dá-se conta de que serão mais de nove mil peças. “E há ainda os presuntos, que não passam pelo fumeiro mas chegam a precisar de três anos para curar.

Vinhos e enchidos viajam bem pelo país, mas o que os alentejanos querem é que a gente venha cá beber e comer com eles. Espertos. Bem-vindos a Vila Alva e à sua Cooperativa de Produção e Consumo, criada por trabalhadores rurais em 1978, que tem associada, nas traseiras, uma salsicharia especializada em linguiça, chouriço de vinho e chouriço de vinagre. Quem gere a cooperativa e faz os enchidos é João Carraça (70 anos), que diz que os seus enchidos, resultantes de receitas que aprendeu em casa, “são do mais puro que há”. “Tirando o sal e os cominhos, tudo o resto é daqui.”

Chega a ser comovente o entusiasmo com que fala da vinha, do território e suas características biogeográficas. Viticólogo da Quinta das Carvalhas há 26 anos, Álvaro Martinho Lopes fala do Douro como um território encantado, “uma região única no mundo, que pode produzir vinhos icónicos”, mas que retribui ainda com uma tradição de pobreza e dificuldades para os seus. Aqueles que são, afinal, os que dela cuidam. Guardião das vinhas e da diversidade genética, Álvaro Martinho sonha também com rendimento e uma vida melhor para os pequenos produtores. A ambição já lhe valeu o Prémio Nacional de Agricultura.

Foto
Aldina Barroso PAULO PIMENTA

Preservar e entender a cozinha tradicional é o que motiva José Dias, um gastrónomo empenhado, activo e estudioso das raízes e tradição culinárias. “O receituário tradicional, principalmente no Minho, é simples e de fácil interpretação. Difícil é a execução, que requer tempo, paciência, carinho, e sobretudo uma grande intuição”, explica, com a experiência e conhecimento de mais de três décadas em que o tem procurado levar à prática. Em Braga, no restaurante Bem-Me-Quer, José Dias é um curador da tradição local.

Zulmira Silva tem 74 anos e o exame da 4.ª classe. Trabalhou toda a vida no campo “de sol a sol” e não faz a mínima ideia do que é o melhoramento genético de plantas ou um banco de germoplasma, assim como não conhece os conceitos de análise de nutrientes do solo, controlo foliar ou stress hídrico. Mas é alguém que olha para uma cultura agrícola com sabedoria e grande capacidade de interpretação das necessidades das plantas.

Foto
Zulmira Silva e o tomate-coração-de-boi dr

Nem a idade lhe acalma o empenho. Aos 72 anos, Gracinda Lima mantém-se firme à frente da cozinha na Casa Lindo de Valbom e nem quer sequer ouvir falar em reforma ou passagem e testemunho. “Nasci aqui, vou morrer aqui”, diz, embora de forma enfática, para expressar o gosto e paixão por aquilo que faz. Afinal, poucos serão os que se podem orgulhar de manter uma casa de família que conta já cerca de três séculos. E é indisfarçável o orgulho de Gracinda, a quinta geração à frente do negócio, nas últimas três liderado por mulheres.

A Toca ficou famosa pelos milhos, mas o receituário da casa está recheado de coisas que só se comem no Douro e nas alturas certas. Ora, nesta arca de Ervedosa está também o bolo borrachão, que é típico do Douro e, noutros tempos, servido em casas mais abastadas porque, para ficar bem feito, é necessário ter à mão, além de farinha, ovos e açúcar amarelo, Porto Tawny com idade. Como o bolo absorve vinho que se farta, fica forçosamente embriagado. E é justamente a absorção do vinho do Porto que torna o bolo guloso, mas não enjoativo ou pesado. A receita foi confiada a Graça Gomes por Elisa Crúzio, dona da Quinta do Castelinho.

Jezus começou por fazer experiências básicas com o sal da Figueira da Foz até que, em 2018, criou uma linha cosmética feita com o sal da Figueira da Foz – a Cristais do Mar. Isto porque, em primeiro lugar, o sal é um ingrediente importante nalguns produtos deste universo e, por outro, a avó de Jezus “era uma bruxa, visto que tinha grande familiaridade com as plantas e fazia receitas para todo o tipo de doenças”. “E nós aproveitamos o conhecimento dela com as plantas para fazer uma linha de cosmética com sal (tratamentos para rosto, corpo, pés, esfoleantes e outros produtos).”

Foto
Gracinda Lima, mestre de cozinha tradicional adriano miranda

Ao comprar um olival em Moura, Mário Carrasco descobriu um hectare de figueiral. Sugeriram-lhe que o arrancasse, mas ele recusou e criou uma marca de figo em calda por variedades – a Courelas da Casinha. Enquanto actividade económica, a cultura do figo em Portugal é, para nós, um mistério. A planta cresce por todo o lado com a maior das facilidades, não sofre de maleitas e raramente pede a atenção do dono (de tempos a tempos uma poda, vá). Dá frutos que deixam bom dinheiro em fresco e não só, mas, vai-se a ver, a instalação de figueirais é, com excepção do que se passa no Algarve e Mirandela, uma raridade. É por isso que Mário e a família merecem a nossa atenção por terem lançado uma linha de figos em calda com duas variedades (Pingo de Mel e Rei Preto) e outra de compota com a variedade Figo de Princesa.

Os irmãos Francisco e António Pavão são a oitava geração dos fundadores da Casa de Santo Amaro, em Mirandela, nascida em 1687. E são os responsáveis pelo lagar que, ao longo de décadas, mais azeites premiados de Trás-os-Montes e do Douro lança no mercado (prémios cá dentro e lá fora). Os dois irmãos esperaram cinco anos por um azeite de excelência e extraído de um olival plantado pelo trisavô.

José Azoia (36 anos) criou, em 2017, a Egocultum, para se dedicar à produção de diferentes leguminosas de variedades portuguesas, semeadas entre o Ribatejo e o Alentejo. Em concreto, grão-de-bico, feijão-frade e chícharos, que ainda são nutritivamente mais ricos do que o grão-de-bico. Tudo isso começou porque o avô Augusto Azoia, de Casével (a freguesia mais a norte de Santarém e que pelos vistos também é peça possível na novela do novo aeroporto da nação), cultivou toda a vida uma certa variedade de grão-de-bico, gosto esse que foi passado ao filho, José Augusto Azoia, e que, por sua vez, o passou ao seu primogénito, José Azoia. O grão tinha fama nas redondezas e quando o jovem agricultor quis registar a variedade, fê-lo, no Catálogo Nacional das Variedades, gerido pela Direcção-Geral da Alimentação e Veterinária, com o nome de Casal da Azoia.

Foto
António Carneiro, um dos mais jovens criadores de Freamunde NELSON GARRIDO

“O sabor é inigualável, porque depois de lhes serem tiradas as ‘alegrias’ as suas carnes se tornam mais macias, suculentas e apetitosas. Aos capões retiram-se-lhes os testículos por volta dos três meses, e com isso não só perdem o pio como passam a concentrar todas as energias na alimentação”, assegura José Augusto Moreira. Para muitos impensável, para muitos uma tradição a manter. “São uma tradição antiga, já a minha avó criava e minha mãe também sempre teve, aqui em casa sempre houve capões”, diz António Carneiro, um dos mais jovens guardiões da tradição secular do Capão de Freamunde, com certificação IGP.

Em termos de notoriedade suína, a hierarquia das nossas raças autóctones é simples: em primeiro lugar está o finório porco Alentejano (5 mil fêmeas reprodutoras), em segundo o rústico Bísaro (a cima das 5 mil) e, por fim, o coitado do Malhado de Alcobaça, com umas 400 porcas – coisa que coloca a raça em risco de extinção. Não admira: qual foi a última vez que o leitor viu numa ementa qualquer corte desta raça do Oeste do país? Pois.

Quem trabalha no sector sabe perfeitamente o que é aquele território, encravado entre o Douro Superior e a parte mais a norte da Beira Interior. Os outros, a não ser que tenham qualquer tipo de ligação à região, não saberão o que a Mêda tem: a concentração do Douro, a mineralidade do granito beirão e a elegância do Dão, logo ali ao lado. Terroir e família são os pilares do projecto de vinhos da Família Carvalho Martins na Mêda.

Nem é preciso que ela lá esteja, que a personalidade de Maria Arménia Santos impõe-se desde que transpomos a porta do Mário Luso, em Gaia. O restaurante foi fundado pelo pai — que lhe deu o nome — e a tia Maria Adelaide, mas o estilo, dinâmica e qualidade diferenciadora têm o seu dedo inconfundível. É um exemplo para o sector, mesmo já não sendo presença regular no seu restaurante dos Carvalhos.

Poderia ser comparado a um diplomata ou ao clássico mordomo, mas são modelos que lhe ficam curtos. Desde logo porque é um homem de estilo franco, directo, e humor mordaz, mas, principalmente, porque é muito mais que isso. Mais que a preservação de um hotel ou a quantidade de garrafas de Cognac e Armagnac no bar, Rogério Medina é uma espécie de anfitrião e mestre-de-cerimónias da ilha das Flores, cioso cuidador de um estilo e património legados pelas décadas de presença dos franceses da ilha açoriana.

Foto
Artur Oliveira e Fernando Rodrigues e as algas do Faial à mesa ana ISABEL PEREIRA

As algas alimentares são para a seaExpert um negócio de nicho que tem vindo a crescer. Artur, um dos sócios, recolhe-as nas poças de maré do Faial para fornecer algumas das melhores mesas dos Açores.

Jagoz de gema, como se designam os naturais da Ericeira, Francisco Esteves escreve, preserva e motiva-se a partir da riqueza e da longa história das tradições locais ligadas às actividades marítimas. “O importante é voltar a pôr a Ericeira no mapa”, frisa o homem com formação e actividade profissional na área da Física mas apaixonado pelas origens, que tem já preparado novo livro dedicado ao receituário e à cultura marítima jagoz. Há mais de duas décadas que Francisco Esteves preserva o receituário e tradições.

Foi já há mais de três décadas que Adriano Ferreira arribou à Costa Nova com a ideia firme de oferecer comidas de tacho. De peixe e cozinhadas na hora. Consigo trazia a experiência de mais de 20 anos a trabalhar em restaurantes e marisqueiras, e com isso o conhecimento do serviço, dos clientes e das suas preferências. Entrava-se na derradeira década do século XX quando Adriano abriu o restaurante A Praia do Tubarão, que instalou numa das típicas casinhas de madeira coloridas e depressa virou referência gastronómica. “Não criei nem inventei nada, apenas recriei”.

Rui é um cozinheiro da nova geração. Com conhecimento abrangente, domínio das técnicas e conceitos e currículo alargado. Daqueles a quem agora chamam chefs. Foi até, em 2016, premiado com o título de Cozinheiro do Ano, mas o que verdadeiramente o motiva é mesmo a cozinha com raízes na memória e tradição, com base no produto. “O que me apaixona é a cozinha tradicional, da nossa memória. É o que faz sentido para quem estamos a cozinhar”, reflecte, constatando que boa parte do que hoje se procura é mais pelo estilo, a estética, que propriamente a essência culinária. E com isso perde-se também o foco no produto, nas suas características e genuinidade. No Mercado do Bolhão abriu um espaço exclusivamente dedicado à cozinha de bacalhau. No Culto ao Bacalhau, até nas sobremesas reina o fiel amigo.

Foto
Rui Martins e o Culto ao Bacalhau NELSON GARRIDO

O azedo é um enchido popular que se come preferencialmente no Entrudo, na companhia dos grelos, à semelhança do que acontece com o butelo (este mais rico porque, naquele tempo, só se usava a bexiga de porco para guardar os pequenos ossos de Assuã e, em regra, um porco só tem uma bexiga, ao contrário do que acontece hoje...). Por ter a matriz da alheira (pão e carnes menos nobres), cada casa podia fazer vários azedos, o que do ponto de vista da economia familiar dava jeito em tempos de escassez. Eis uma histórica rica em azedos: devemos prová-los porque é uma forma saborosa de homenagearmos os transmontanos.

Este caldo é, para os maluquinhos por grão-de-bico, uma perdição. Tem o sabor forte da leguminosa, mas suavizado pela gordura das carnes, sem que – detalhe importante – apareçam por aqui notas impositivas e agressivas de fumeiro. Na hora de servir, uma folha de hortelã, que, libertando bons aromas, nos atira mais para o Alentejo do que para a Beira. Mas, lá que fica bem, fica. Aqui, não se trata apenas de guardar de uma receita saborosa, mas de preservar uma leguminosa que deveria criar riqueza nas famílias de pequenos agricultores das Beiras.

Foto
Diogo Almeida, mestre das fogaças Nelson Garrido

A Confeitaria Castelo nasceu em 1943, na rua mais estreita de Santa Maria da Feira, e em 1968 foi vendida pela Araújo e Filhos, Lda., ao funcionário que já lá ajudava no fabrico de doçaria aos domingos. Foi assim que Rogério Portela de Almeida deixou a pichelaria e passou a focar-se na produção de fogaça, que tem Identificação Geográfica Protegida desde 2016, mas é há séculos o produto gastronómico mais simbólico da terra, pela sua história de pão doce prometido desde 1505 a São Sebastião em troca da sua protecção anual contra a peste negra. Quando Rogério toma conta da casa, já o pequeno Diogo, seu filho, tinha dois anos. É ele o actual proprietário da confeitaria. Muita fogaça, muita história.

“Se a necessidade me obrigou a trabalhar a pastelaria por conta própria e em casa - era coisa que dominava -, a limitação do glúten e também dos lacticínios foi o gancho certo para o negócio. Há muita gente que, mais do que comer um doce ou um bolo, quer voltar a sentir o sabor das receitas clássicas”. A ideia de Rute Cristóvão não é reinterpretar o receituário tradicional, mas torná-lo acessível a quem não tolera a farinha de trigo e lacticínios. Toda a gente tem direito a uma sericaia ou ao genial pão de rala.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários