Michelin soube a pouco? Há “países maiores que Portugal que não têm um 3 estrelas”

Para Gwendal Poullennec, director dos Guias Michelin, a selecção de restaurantes do primeiro guia exclusivo de Portugal é “óptima”. Mas para muitos chefs portugueses há um travo a desilusão.

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LUSA/LUÍS FORRA
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Gwendal Poullennec​, director Internacional dos Guias Michelin, anunciou durante a cerimónia do primeiro guia dedicado exclusivamente a Portugal, na noite de terça-feira no palco do Centro de Congressos do NAU Salgados, em Albufeira, Algarve, que havia "boas notícias". A expectativa dos cerca de 500 convidados foi em crescendo, acompanhando a de muita gente da restauração nacional, mas, no final, ninguém escondia a desilusão com esta primeira colheita: se falarmos de estrelas, foram apenas quatro novos 1 estrela, um novo Estrela Verde e um novo 2 estrelas. E o tão esperado 3 estrelas não se materializou.

Como se explica o desfasamento entre as expectativas dos portugueses e a satisfação do responsável da Michelin? Foi o que quisemos saber numa breve conversa com Poullennec no final da gala.

O sentimento geral no pós-gala da Michelin para o guia de Portugal 2024 é de decepção. As expectativas dos portugueses eram exageradas?

Nós no Guia Michelin não temos números definidos nem quotas, mas tanto eu como os meus inspectores estamos muito satisfeitos porque vimos tanto progresso, tanto que aconteceu nos últimos anos. Oito Bib Gourmand, 21 novos restaurantes Recomendados, duas Estrelas Verdes, quatro novos 1 estrela, um novo 2 estrelas, sente-se realmente a vibe e a dinâmica. Ao longo dos anos, os chefs e as suas equipas têm vindo a elevar a fasquia.

Só para lhe dar alguns números: o Guia Michelin está presente em Portugal há mais de um século, há 50 anos havia quatro restaurantes com 1 estrela; hoje temos dez vezes mais. Há poucas décadas quase todos os restaurantes de alto nível estavam aqui no Algarve, e porquê? Eram chefs estrangeiros a cozinhar para clientes estrangeiros.

Agora, se olharmos para o mapa, temos restaurantes por todo o país, houve um reequilíbrio total. A maioria dos chefs são portugueses, mesmo que muito abertos ao mundo. Houve uma mudança real e sentimos realmente uma força. Vocês têm excelentes produtos, os chefs respeitam muito esses produtos, estão cada vez mais atentos a uma gastronomia sustentável. Cinco Estrelas Verdes é já bastante. Temos realmente a sensação de que o futuro é muito promissor.

Olhando para os chefs que subiram ao palco, vemos a diversidade, vemos que estão abertos ao mundo, há chefs estrangeiros, outros que se formaram lá fora e regressaram a Portugal e isso está a criar uma dinâmica muito positiva. Por isso, para nós a selecção deste ano é óptima e esperamos poder contribuir para continuar a subir a fasquia.

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Gwendal Poullnnec, director dos Guias Michelin dr

Mas sabiam certamente que a expectativa era maior e que os números não são assim tão impressionantes do nosso ponto de vista.

Em todos os países, por todo o mundo, as pessoas esperam ter muitos 3 estrelas. Ok, ainda não há um 3 estrelas, mas temos nos guias países maiores sem um restaurante 3 estrelas. Temos que voltar aos critérios do guia e dos inspectores, que são muito iguais em todo o mundo. Pode ser uma questão de consistência ou diferentes factores, mas podemos ver claramente o progresso.

Para mim, esta noite é a festa do pontapé de saída porque pela primeira vez estamos realmente a colocar o foco em Portugal e na gastronomia portuguesa, com uma cerimónia, com a presença de jornalistas internacionais, e este é um dos factores que contribui para elevar o jogo.

Temos de ser humildes. Se queremos contribuir para o dinamismo da indústria precisamos levar as pessoas a juntar-se à indústria e é por isso que temos prémios como o de serviço de sala, o de melhor sommelier. Precisamos de chefs, mas também precisamos de um óptimo serviço, e temos de trabalhar para que essas profissões sejam atractivas. Quando olhamos para o mundo hoje, e não vejo grandes excepções, a questão não é a falta de clientes, é a falta de pessoal. Temos de trabalhar nisso colectivamente.

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Vítor Matos sagrou-se campeão da noite, com duas estrelas para o seu Antiqvvm do Porto, e mais dois projectos distinguidos Lara Jacinto/NFACTOS

As pessoas ainda estão muito centradas nas estrelas, e vocês querem maior foco nos Bib Gourmand e nos Recomendados?

Para nós o que é importante é o foco na indústria no seu conjunto. Até os melhores clientes não comem em restaurantes estrelados todos os dias e quando vemos o movimento no nosso site, os Bib Gourmand podem ter ainda mais procura do que os estrelados, porque os clientes procuram também o value for money (com a melhor relação qualidade-preço), e esse é um critério importante. Para sermos relevantes temos de ter uma oferta abrangente.

Temos inspectores que viajam por todo o mundo, sempre, sabem o que é a gastronomia japonesa, a francesa, a chinesa. Têm de ter uma mente aberta e serem capazes de comparar e trabalhar com restaurantes de diferentes níveis. Mesmo os inspectores mais experientes não comem todas as refeições em restaurantes com nível de estrela, podem ir aos melhores mas também aos piores e até a alguns que nunca figurarão no guia, apenas para fazer comparações e ter a experiência de um cliente normal.

Quando um país passa a ter um guia próprio, como acontece agora com Portugal, o que é que muda na forma como trabalham? Há mais visitas, mais inspectores destacados?

O que faz a diferença não é o facto de termos decidido ter um momentum diferente na relação Portugal/Espanha, mas quanto mais a cena gastronómica cresce aqui mais tempo é necessário e mais recursos são necessários. O Guia tem estado a crescer e a alargar-se a diferentes países, por isso tenho estado a contratar, temos inspectores chineses, mais japoneses, tailandeses, porque precisamos de crescer e conhecer as culturas. Há mais restaurantes que têm de ser testados e recomendados, e, como sabe, temos de voltar uma e outra vez. Por isso, investimos mais do que nunca no destino [Portugal] e continuaremos a fazê-lo porque a selecção vai continuar a crescer, temos a certeza disso.

E isso significa mais visitas?

Mais pessoas para fazerem mais visitas. Mais recursos. E mais investimento da parte da Michelin. O que para mim teria muito impacto, e por isso decidimos separar a selecção espanhola da portuguesa, é o facto de Portugal merecer estar na ribalta e não na sombra de Espanha, que é muito grande, e os chefs espanhóis sempre tiveram um carácter muito forte e foram muito bons no marketing.

E aqui há uma identidade gastronómica, Portugal é um destino por si mesmo, é um país, uma língua, temos de o fazer para revelar todo o potencial. E mais uma vez é apenas um primeiro passo. O que aprendi nos 20 anos em que trabalho na Michelin é que é sempre uma questão de consistência. Fazemos isto há 124 anos. O impacto que temos na cena gastronómica de um país não é imediato, ganha-se ano após ano. Quando se coloca o foco na indústria há um efeito de contágio. Claro que é bom esperar mais, mas está a crescer, a questão é a que velocidade.

Se compararmos com destinos que lançámos recentemente, todo o feedback que recebo diz que não só contribuímos para criar uma audiência local, mas atraímos viajantes internacionais, contribuímos para a cadeia de abastecimento, os produtores. Quanto melhores os restaurantes, mais procura há e isso eleva também a qualidade dos produtos e todo o ecossistema vai mudando. A evolução é um sucesso quando impacta todo o ecossistema.

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A foto da praxe, com todas as estrelas da noite portuguesa da Michelin dr

Uma pergunta sobre os restaurantes que perdem estrelas. Foram três este ano em Portugal, dois por encerramento e um, o Vistas, cujo chef, Rui Silvestre, saiu. Foi essa a razão da perda da estrela?

Não posso comentar casos específicos, mas vou referir o principio que seguimos e que é o mesmo em todo o lado: a estrela não está ligada ao chef. É o reconhecimento do trabalho de equipa no restaurante. O chef é apenas o embaixador e o porta-voz na maior parte das vezes. Embora ele possa ser uma peça crítica no restaurante e se sinta imediatamente o impacto, seja na criatividade ou no clima, nós reconhecemos esse facto, mas a nossa avaliação é baseada na qualidade da experiência. Em muitos casos o chef pode sair e o restaurante manter-se consistente ou até melhorar.

Portanto, a estrela não está ligada ao chef, a menos que ele seja uma peça absolutamente essencial do que se passa no restaurante. Mas não é uma questão da marca do chef, há alguns que têm vários restaurantes com o mesmo nome, uns são um sucesso, podem ter 3 estrelas, outros 1 estrela, outros não entram sequer nos Recomendados. É sempre uma questão da experiência que temos quando fazemos as visitas.

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