Pais: autonomia, sim; abandono, não

A autonomia significa ser auto-suficiente, agir sobre os seus próprios desejos, valores e interesses e é, claramente, uma meta importante que devemos ter para os nossos filhos.

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EDUARDO MOSER/SANDRADESIGN
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Querida Mãe,

Uma das palavras mais trendy na gíria da pedagogia e da parentalidade é "autonomia". Os Velhos do Restelo queixam-se da falta de autonomia das novas gerações, e da sobreproteção dos pais, que infantilizam os filhos, fazendo pelas crianças o que, supostamente, elas conseguiam fazer sozinhas. Por outro lado, muitas das novas pedagogias falam da autonomia como um Santo Graal, criando expetativas irrealistas e, muitas vezes, confundido autonomia com abandono.

A autonomia significa ser auto-suficiente, agir sobre os seus próprios desejos, valores e interesses e é, claramente, uma meta importante que devemos ter para os nossos filhos, mas é também um processo que faz parte do desenvolvimento humano, com um marco importante entre os 18 meses e os 3 anos. Ou seja, algo para que pode ser incentivado e trabalhado, mas que tem um tempo próprio e não se conquista à força.

Mãe, porque importa saber estas coisas? Porque temos que ser realistas em relação às expetativas que criamos. As etapas do desenvolvimento infantil estão estudadas, e são ciência, resultado de milhões de anos de evolução do ser humano, e não podemos ter a veleidade de que dependem do empenho ou esforço dos pais. Não é assim. Há muitas coisas que eles, apesar de pequenos, são muitíssimo capazes de fazer, e outras, que apesar do jeito que nos dava, não é apropriado esperar deles.

Mas o que torna as coisas mais complicadas, é que cada criança percorre esta “escada” ao seu próprio ritmo, e por múltiplas razões, alguns miúdos podem ser muito despachados nalgumas áreas, e ainda receosos noutras.

Tudo isto me levou a pensar se, apesar de tudo, haveria algumas “verdades” que merecessem passar a post-its de frigorífico e conclui que podemos confiar razoavelmente nas seguintes:

  1. A fase do “Quero fazer sozinho” é irritante, porque as coisas demoram muito mais tempo e desarrumam mais, mas é importante!
  2. Distinguir o que é deles do que é nosso. Por exemplo, ele já anda bem de bicicleta sem rodinhas, e quer tirá-las, mas eu não aguento a ansiedade e o receio de que se magoe me provoca. Como posso trabalhar o meu medo e ao mesmo tempo reduzir o risco, sem o impedir de andar para a frente? Uso do capacete, etc. e tal.
  3. Treinar a confiança. O Alex Honnald, o escalador que escala sem corda, antes disso escala milhares de vezes com corda. Ou seja, antes de fazer uma coisa difícil é preciso treinar em segurança e só passar ao passo seguinte com confiança.
  4. Conhecemos melhor que ninguém os nossos próprios filhos. Independentemente do julgamento exterior, podemos ter a certeza de que precisam de mais tempo antes de uma determinada conquista.
  5. Todos somos interdependentes. Mesmo como adultos, ser autónomo é, também, saber pedir ajuda quando precisamos dela! É importante não só dizer-lhes isto, como que vejam com os seus próprios olhos como também não hesitamos em recorrer ao apoio dos outros.

Mãe, hoje estou com a corda toda, por isso deixo-lhe também um jogo que tem ajudado os seus netos mais pequeninos, com a vantagem de que o adoram.

Quando vamos passear, no regresso a casa digo-lhes que vão ter de continuar “sozinhos”, afasto-me deles e deixo-os ir à frente. São eles que têm de escolher os caminhos, e eu não digo nada. Evito também (dentro da medida daquilo que sei que interiorizaram) dar avisos (“Cuidado aí”, “Olhem o cruzamento”) e aproveito para ver como se comportam em relação à segurança. Observo como agem no passeio, como fazem quando têm de atravessar estradas, se vão muito distraídos ou se já vão focados, etc.. Isto vai dar-me confiança para depois os deixar ir verdadeiramente sozinhos.

Beijinhos!


Querida Ana,

Obrigada pela tua carta, que me fez muito bem. Ao contrário do que seria expectável, acho que os avós têm muito mais dificuldade em conceder autonomia a uma criança, do que tinham enquanto pais. E não estou a falar na responsabilidade acrescida que resulta de nos confiarem os vossos filhos, que não são nossos, mas de uma consciência crescente de que as coisas más acontecem, mesmo quando se tomam todos os cuidados.

É por isso que sou cada vez mais a favor — contra a tendência crescente, eu sei! — que os pais sejam pais quando ainda são novos, com a memória fresca de como sobreviveram incólumes a todos os riscos que animadamente correram.

Estou-me a rir, mas é verdade, Ana. Quando subia até ao alto da pimenteira do nosso jardim, não olhava para baixo e ficava no cimo da árvore a ler, sem medo nenhum de cair. Foi essa memória que me permitiu, aos vinte e poucos anos, achar a coisa mais natural do mundo que vocês também a subissem, enquanto agora, agora suspeito que tentaria desencorajar os meus netos de tentarem a mesma aventura.

Idem aspas com o caminho para a escola, aos 6 anos, com um irmão de três pela mão, sem medo de lobos maus — e não era porque não existissem — os abusadores e os criminosos não são uma criação do século XXI —, mas porque os meus pais provavelmente estavam vigilantes e observadores, dez passos atrás, tal como tu estás com os teus, deixando-me crescer em confiança e segurança, deixando-me confirmar que era capaz.

Mas, como tu dizes, não amadurecemos em todas as áreas ao mesmo tempo, nem da mesma maneira. À noite, tinha imensos medos, e dormir fora de casa era um desafio e, ai, a mesma mãe que me punha a andar para a escola sozinha, ia buscar-me a meio da noite porque, apesar do entusiasmo do projeto, a angústia tomara conta de mim.

Ana, o que concluo de tudo isto, é a certeza de que voarmos à vista de alguém, que se alegra quando abrimos as asas, mas nos impede de nos estatelarmos no chão, é a maior dádiva que nós podem dar.

Mas, muitas vezes, temos de esperar anos para a obter porque, como dizes, autonomia pode ser confundida com abandono, e nem sempre são os nossos pais que nos fazem crescer, mas essa é conversa para uma outra carta.

Beijinhos


O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. As autoras escrevem segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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