O Coração Ainda Bate. Uma palavra esquecida
Inês Meneses escreve sobre essa palavra difícil chamada gratidão.
Revi recentemente “A Favorita”, do grego Yorgos Lanthimos, com Olivia Colman, um filme mais assertivo, na minha opinião, do que “Pobres Criaturas”, que continua nos cinemas.
“A Favorita” acompanha a vida de dissabores da Rainha Ana da Grã-Bretanha, mas o que retive desta vez, para além dos papéis certeiros de Emma Stone e Rachel Weisz, foi a frase que anotei rapidamente: “A gratidão é uma brisa que muda de direcção”. A frase podia ecoar só na corte, mas continua muito actual. Pus-me a pensar na gratidão, muito diferente da subserviência, e como é reveladora do carácter das pessoas. O que diz de nós? Que a memória não deve ser obliterada e que somos duvidosos se vamos com a brisa para onde ela soprar mais favorável. Às vezes é uma ventania.
Será difícil ficar com os derrotados, os desfavorecidos, os injustamente caluniados, quando o nosso ego que, a julgar pela brisa, parece uma pluma, é facilmente empurrado para o lado dos vitoriosos.
Hoje em dia só pensamos nos vencedores. A sociedade está feita para coroações rápidas, pouco fundamentadas. E nem é de política que falo, embora quase todos os nossos actos sejam políticos. Podemos afastar-nos dos amigos que estão tristes, doentes, dos que requerem mais tempo, dos que precisam de ser ouvidos. Queremos poucos incómodos e, de preferência, que tudo se resuma a um gosto. De desgostos - pensamos baixinho – está o nosso mundo cheio. Então, atordoados nesse coro de aplausos, podemos facilmente esquecer-nos da gratidão, uma palavra para a qual olhamos com algumas reservas por parecer antiga, ultrapassada, do domínio do espiritual e por isso duvidosa. Talvez fosse bom recuperá-la.
A gratidão não é uma dívida – é uma dádiva, um reconhecimento. Facilmente nos faz dialogar com o bem. A gratidão baliza-nos. Põe-nos do lado certo do campo.
Ao longo destes anos tenho conversado com muitas pessoas na rádio e fora dela. Maior parte das pessoas bem-sucedidas reconhece que teve sorte e olha para essa sorte com gratidão. Claro que a sorte tem nomes, rostos associados, pessoas que não deram à sola quando precisávamos delas. A sorte e a gratidão estão ali de braço dado. É preciso reconhecê-las para perceber onde estamos. Tenho a impressão (para não dizer a certeza) de que, se não formos gratos, a sorte facilmente se esgota.
A gratidão é um peso porque às vezes nos lembra de onde viemos e custa-nos reconhecer que já fomos menos ou que alguém, pelo menos na altura, importante, nos ajudou. Nos deu a mão. Deu a cara por nós. Nos emprestou a casa. Prescindiu de uma privacidade necessária para nos acolher. Nos escutou quando precisava de ser escutado. Às vezes não são só os amigos. São pessoas que cruzaram a nossa vida em determinado momento e foram determinantes. Há quem se esqueça facilmente disso. O passado é uma ameaça quando nos devolve com clareza uma fotografia onde não queríamos aparecer.
A gratidão, às vezes, é um fato de ombros largos e enchumaçados, que não queremos vestir porque já não se usa. Está ali no armário a lembrar-nos desse momento perturbador em que tivemos de pedir ajuda ou alguém se atravessou por nós sem sequer o termos pedido. Se eu olhar para trás (como quem olha para o armário) sei muito facilmente identificar as pessoas e os momentos-chave em que me tornei melhor por ter sido ajudada ou apoiada. O momento em que alguém acreditou em nós. E também é disso que nos esquecemos com rapidez: esse momento em que alguém nos abriu caminho para crescermos. Profissional e humanamente (acho que desta segunda parte ainda nos esquecemos mais). Ninguém cresce sozinho. Ninguém tem reconhecimento sem pares.
Volto a dizer que a gratidão não é uma dívida mas uma dádiva. É um bom exercício de humildade lembrarmo-nos das pessoas que apostaram em nós. Este 'apostar' pode não ter nada de premeditado e ser muitas vezes apenas altruísmo. Os amigos fazem-no e, fora do círculo da amizade, os bons também o praticam sem colher dividendos.
Tudo isto começou com um filme revisto e uma frase anotada: “A gratidão é uma brisa que muda de direcção”. Não se deixem levar por essa aragem enganadora. Sabemos muito bem de onde viemos.
O coração ainda bate.