Já foi há quase 10 anos. Ainda escolhia a roupa da minha filha. Ainda lhe fazia tranças. Gostava muito desse ritual de, em cima da hora, ainda gastarmos cinco minutos, que pareciam já não existir, para, sem espelho, os meus dedos se entrelaçarem no cabelo claro dela. Hoje vejo fotografias desses tempos e não tenho como não ficar nostálgica, ainda que contrarie essa ideia de que tudo passa num instante. Tenho sentido o peso do tempo. É bom. Dá-lhe consistência, densidade. O tempo passa a ter o desenho de um tornado. Menos veloz, mas tem forma. Não me escapam pelas mãos, como nesse tempo, alguns fios de cabelo dela.
Era só mais um dia de escola. Lá fomos as duas pelo passeio que nos fazia esquecer de que estávamos na cidade. Falávamos de tudo o que tínhamos visto na véspera. Do mistério das nuvens, do que estava para lá do que se via. Essas conversas eram perfeitas. Eu deixava-a na escola e seguia para a rádio. E, no fim do dia, lá estaria a ir buscá-la.
Penso no que me disse, nesse dia, a professora, quando me ligou horas antes: “mãe, houve aqui uma situação chata”. E eu fui a correr. A minha filha estava ainda atordoada, mais pelo choque e pela surpresa, mais por ter ficado a saber que duas pessoas da idade dela podiam fazer uma coisa daquelas e parecerem iguais. Tinham-lhe cortado em pedaços a t-shirt preferida dela. Não sobrava nada. Foi um ato de malvadez que nem se percebe que intuito teve a não ser o de ferir, o de a fazer sentir estranha com a sua camisola esquartejada por duas colegas que pareciam ser também amigas.
A professora estava tão em choque como a minha filha. Era a perplexidade de algo que podia ser mais grave do que parecia. Viemos para casa. Já não me lembro que forma teve o consolo dessa noite. Lembro-me de que as mães das miúdas me ligaram muito atrapalhadas. Que se indignaram com as próprias filhas que o tinham feito, sabe-se lá com que intenção: punir? Humilhar?
Esta semana lembrámo-nos do episódio. Sabemos ambas que nunca mais nos iremos esquecer do nome das duas miúdas que estiveram aqui em casa, várias vezes. Que pareciam pessoas como nós. Seriam? Serão?
Hoje quando leio coisas graves, inomináveis, sobre a malvadez de gente que ainda há pouco deixou de ser criança, não posso também deixar de pensar nos pais: como estamos a educar os nossos filhos? Como fazemos a distinção entre o bem e o mal? Que limites lhes impomos? Fazemos perguntas suficientes? Damos exemplos? Os nossos filhos sabem o que se está a passar no país e no mundo ou só no tablet?
Hoje em dia já tenho mais dúvidas sobre se seremos naturalmente bons e se é sempre o outro que nos corrompe. Será? Ou nunca ultrapassámos a ideia de que temos de sobreviver sempre acima dos que se apresentam mais fracos, diferentes, esquisitos? Esquisitos por não se parecerem connosco. Já pensaram que, ao esquisito, aquele que se acha dentro dos padrões pode parecer muito fora do normal?
Estamos a desligar-nos do mundo dos nossos filhos, em muitos casos porque não conseguimos acompanhar em tempo real as mudanças deles, tão velozes. Algumas com pouco sentido para nós. No entanto, as mudanças acontecem e nós, mesmo tendo de lidar com o desconhecido, ainda sabemos o que é fazer o bem e o mal. Tenho que o dizer desta forma prosaica: sabemos todos o que é o bem e o mal. E não estamos a impedir que o mal aconteça a toda a hora, a tanta gente que nunca fez nada para ser punido, humilhado ou violentado, tantas vezes que se morre um bocadinho todos os dias. É impossível não sabermos o que se passa em volta. É impossível que não nos chegue aos ouvidos alguma coisa. Estaremos nós, pais, a não fazer nada para que o mundo fique um bocadinho menos estranho?
Ainda sabemos o que é o bem e o mal. Não é só na igreja que nos lembramos de ser melhores.
À mesa do jantar essa distinção pode fazer-se todos os dias.
O coração ainda bate.