Tinha dormido mal, como acontece em quase todas as noites. A luz, no despertar, já lembrava um dia de Primavera. Bebi um café longo, onde sempre, sem guião prévio, escrevo uma espécie de história, que raras vezes vê a luz do dia. Vesti-me de acordo com a estação que se precipitava neste Inverno e fui ter com ela.
Subi a escadaria, alcatifada, cinzenta, enquanto pensava se da última vez que ali tinha estado aqueles degraus já existiam. A cidade muda depressa. Quando alcancei o primeiro andar, ela estava junto a uma janela grande de portadas abertas, que o «cachet» nem sempre preserva. Uma luz bonita (lembrei-me d´A Idade da Inocência) roçava-lhe o rosto e eu avancei. Afinal eram 25 anos sem estarmos juntas. A luz, que não é só do cinema, estava ali para o reencontro.
Quando voltamos a estar com alguém de quem estivemos afastados muito tempo (no campo dizemos, apartados) tudo nos parece vir a propósito, até quando é inusitado. Ali, eram as cervejas que não bebi durante anos, as pessoas que nos eram comuns, aquilo que nos fez levitar da mesma forma.
Por que razão nos afastamos dos amigos, se eram mesmo amigos? Talvez às vezes ainda não saibamos que o são verdadeiramente.
Vou abreviar este encontro que só faz sentido a quem o viveu: quatro horas depois, saíamos dali com vontade de fazer qualquer coisa pelo mundo, vontade que se retrai facilmente perante a actual ordem natural das coisas. Ou também pode acentuá-la.
Cheguei a casa e repeti várias vezes o nome dela e as coisas que nos fizeram rir: aquelas em que tivemos uma urgência enorme de concordar e acenar, limpando os olhos brilhantes e cheios. São isto os amigos? Também.
Às vezes os amigos entram numa realidade paralela à nossa: andámos ali tão perto e um gole a mais entornou o copo com que brindávamos. Todos perdemos amigos que estão vivos e atravessam o mesmo caminho que nós. Então, o que falhou? Acho que falha qualquer coisa que nem sequer sabemos explicar. Estar afastada de alguém 25 anos é muito. É metade da minha vida. Se tenho vontade de recuperar o tempo perdido? O tempo não se recupera. Vive-se. E se o quisermos viver de uma forma limpa, justa e luminosa, então diria que vamos a tempo.
Nos últimos meses aproximei-me de pessoas de quem estive afastada muito tempo. Não encontraria motivos de maior para estes afastamentos: ninguém me caluniou ou se apropriou do meu património afectivo. Os amigos, como numa relação amorosa, um dia acordam e dizem que o tempo não está de feição para as nossas zonas. Sopram agrestes os ventos que nos levam a esses amigos. E eles até nós. Se calhar, as tempestades com nome de pessoas são de meteorologistas que tiveram desgostos com amigos. Amigos a quem tudo o vento levou.
Aos amigos de quem me aproximei agora (e de quem me afastei no passado), lembro que não vale a pena estarmos apartados. Que os almoços de quatro horas com o sol do fim da manhã e uma cerveja no copo (eu que nem bebia cerveja) justificam o fim de qualquer zanga.
Vamos ler a bula dos amigos que acabo de redigir sumariamente:
Não reatar se não gostar de reavivar memórias felizes.
Não reatar se precisar de um coador para distinguir aquilo que pode ficar e o que tem de ir pela pia abaixo (na amizade tudo fica na rede).
Não reatar se não tem capacidade para ficar quatro horas a rir e a chorar (mesmo das coisas insignificantes).
Não reatar se não admite beber aquilo que considerava ser um item extinto da sua lista.
Não reatar se teme voltar a sofrer de novo. Um em cada 100 pode apresentar esse dano.
Reatar uma amizade tem o efeito perigoso de nos fazer sentir vivos outra vez. Compreendo quem se queira proteger. Compreendo quem queira adiar o momento até já lhe parecer que tudo vale a pena de novo.
Vou citar (sempre) a Joan Didion: “A vida muda num instante. Num dia normal.”
Foi naquela manhã que se estendeu pela tarde.
O coração ainda bate.