Aos 4 anos, Zara subiu aos 5364m do Evereste e mostrou que viver a natureza traz felicidade
O pai destaca ao PÚBLICO a importância do ambiente para o desenvolvimento de uma criança. O especialista em Motricidade Humana Carlos Neto concorda: “O contacto com a natureza promove resiliência”.
Com 4 anos e cinco meses, Zara caminhou cerca de 170 quilómetros na companhia do pai, David Šifra, e do irmão, de 7 anos, desde Jiri, porta de entrada para o monte Evereste do lado do Nepal, a 190 quilómetros de Katmandu, até ao acampamento da base Sul. Atingiram a altitude de 5364 metros no dia 1 de Janeiro, quando os termómetros no local marcavam entre 20 e 25 graus negativos.
O feito, que tem sido noticiado por órgãos de comunicação de todo mundo, com foco na extraordinária capacidade física da rapariga, não surpreende o professor e especialista em Motricidade Humana Carlos Neto. “Desde que tenham contacto com a natureza, com o risco, as crianças são muito resilientes, mais ainda do que os adultos”, justifica.
É o caso de Zara e também do seu irmão mais velho, explicou o pai das crianças, David Šifra, numa troca de mensagens com o PÚBLICO. Nascido na antiga Checoslováquia, na parte da actual Eslováquia, David relata que a sua percepção da importância do ambiente para o desenvolvimento de uma criança despertou depois de mais de dez anos de trabalho humanitário, que o levaram a zonas de conflito, nomeadamente no Afeganistão, mas também a conhecer de perto “as realidades de tribos na Sibéria, Mongólia, Tibete, América do Sul, África e, agora, Malásia”, onde reside.
“Há duas partes que influenciam o desenvolvimento de uma criança: a primeira, que valerá entre 1% e 5%, é a cultura, o que lhes passamos como pais; o resto é o ambiente onde criamos os nossos filhos. E, com o passar dos anos, a segunda tem cada vez mais peso.” Por isso, avalia, os pais “perdem” os filhos para o ambiente que os rodeia por volta “dos 13 ou 14 anos”.
Tendo por base essa ideia, David decidiu que seria ele a escolher o ambiente em que os filhos cresceriam, com o objectivo de “os preparar para tudo na vida”. Primeiro, conta, teve de convencer a mulher, uma professora canadiana que cresceu a acreditar no modelo de educação ocidental, levando-a a conhecer as tribos que o inspiraram. E, quando os filhos chegaram, o casal já estava em sintonia. O mais velho, para o qual criaram um personagem, Sasha (o nome verdadeiro é Alex), através do qual contam as suas aventuras nas redes sociais e num site, já tem no currículo mais de 50 países visitados e algumas actividades raras para a sua faixa etária, como ter atravessado o Tibete à pendura das bicicletas dos pais quando tinha apenas 13 meses.
Mas as capacidades de ambas as crianças não são inatas. Por exemplo, relata David, inscreveu-os na escola chinesa por considerar ser a “mais desafiante a nível mental”, mas sabe que, durante esse período diário, “estão a perder a parte do movimento”. Para compensar, conta, “todos os dias, depois da escola, todos os dias, fazem cinco a dez quilómetros na selva, em percursos com elevação e com muitos obstáculos”. É nesta combinação, entre a capacidade de ter curiosidade sobre ciência, saber comunicar em várias línguas e se superarem fisicamente, dia após dia, que David acredita estar a alegria dos filhos. “A felicidade vem do conhecimento, das competências; não vem das coisas que se tem, como um telemóvel, um automóvel ou uma casa grande.”
Contacto com o risco
Esta é uma tese defendida há décadas por Carlos Neto que observa a decadência das competências motoras na infância ao longo dos últimos anos, e que, diz, se agravou com a pandemia. “Hoje, é comum [as crianças] não saberem saltar, atar sapatos, vestir casacos”, enumera, considerando que parte da explicação para este problema reside no facto de as crianças portuguesas estarem a “viver debaixo de tectos (de casa, da escola, do carro…), com os corpos aprisionados”, o que acaba por dar origem a comportamentos que vão de uma simples birra a uma severa agressividade. Tudo porque, constata, não lhes deixam usar energia a brincar.
David Šifra, que garante que os filhos “nunca fizeram uma birra”, considera que é importante questionar “porque é que os miúdos estão a fazer birras, porque é que fogem [dos pais] e não respeitam os adultos”, reforçando a importância de lhes proporcionar momentos de contacto com a natureza, em que exploram os seus limites. É que, acredita, essas situações fazem com que se sintam “orgulhosos de si próprios”, como os seus dois filhos se sentiram durante a escalada no monte Evereste, ao longo da qual, os pequenos chegaram mesmo “a ultrapassar centenas de outros caminhantes”, revelando uma excelente capacidade de adaptação.
No reverso da moeda, há o risco de acidentes, algo que David assume como “o grande problema”, aceitando que “pode acontecer e em qualquer altura”. Na recente expedição à base do monte Evereste, a aventura, admite, tinha perigos. É que, embora a entrada pelo Nepal, a preferida dos cerca de 35 mil turistas que visitam a região, tenha um baixo nível de dificuldade, apresentando trilhos fáceis de percorrer, chegar ao acampamento base Sul implica uma escalada até 5364 metros acima do nível do mar, com a possibilidade de se apresentarem sintomas da doença de altitude, causada pelo ar com menos concentração de oxigénio — acima dos 2500 metros, 20% das pessoas apresentam queixas, nomeadamente cefaleias, náuseas ou perda de apetite; depois dos 3000, a percentagem sobe para 40%.
Não foi o caso de Zara nem de Alex. “As crianças têm uma capacidade adaptativa muito grande”, constata Carlos Neto, ressalvando que para um empreendimento como este “é necessário acompanhar as reacções do corpo, nomeadamente o ritmo cardíaco e a respiração” dos miúdos. No caso, refere-se na informação divulgada sobre a aventura, a saturação de oxigénio das crianças ia sendo verificada e “nunca desceu abaixo dos 90%” — ao nível do mar, uma saturação saudável deverá estar acima dos 95%, no entanto, à chegada aos 5000m de altitude, é normal rondar entre os 75 e os 80%. Além disso, o facto de os dois tomarem banho de água fria (os pais contam que Zara “até junta gelo ao seu banho”) foi essencial para lhes permitir aguentar os ambientes particularmente gelados. É que até no interior dos abrigos, com “condições muito limitadas”, as temperaturas rondavam os dez graus negativos.
O especialista português em Motricidade Humana conclui que este é um bom exemplo de como uma criança pode ser mais feliz se lhe for permitido viver a natureza — “Desde que haja vigilância e um bom vínculo afectivo, isto é exemplo de uma infância bem vivida” —, acusando de “negligência” o que está a ser vivido em Portugal, onde impera a lógica de “impedir que as crianças tenham contacto com a natureza e com o risco”. E chama a atenção: “Uma criança sem contacto com o risco é uma criança mais propensa ao acidente.”