Postal de Santa Maria da Feira: a fogaça

O senhor que seguia atrás de mim trazia as mãos ocupadas com dois sacos e segurei-lhe a porta para que saísse. Parecia triste. Sorri-lhe. Vale sempre a pena sorrir a um desconhecido de cara triste.

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"Só provei a fogaça ao fim do dia. Deliciei-me. O sabor é suave" Confeitaria Rainha 6
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– Amigo, tenho pouco tempo, mas não queria deixar de comprar uma fogaça. Aqui perto, onde posso fazê-lo?

– Sai do hotel, vira à esquerda e ao chegar à Avenida Francisco Sá Carneiro, vira à direita e avança. A dada altura, vai encontrar uma padaria do lado direito da rua –, indicou-me, sem hesitação, o rececionista.

– É das boas?

– Das melhores.

Fiz como indicado. Dois minutos depois, passei em frente à Confeitaria Rainha 6. Sem lugares disponíveis por perto, fui avançando até parar o carro a cerca de 200 metros da confeitaria. Corri até lá.

– São duas fogaças, por favor, uma grande e outra destas mais pequenas –, pedi, com alguma urgência na voz.

A menina colocou as fogaças escolhidas na bancada e entregou-se à operação de embrulhamento com calma e minúcia. Apesar de estar um pouco apressado, apreciei o vagar e cuidado com que cortou o papel e embrulhou as fogaças e as atou com uma fita amarela, em cujas pontas colou o selo de certificação – há 16 produtores certificados para confecionar a fogaça de Santa Maria da Feira, a Confeitaria Rainha 6 é um deles.

– Ainda estão quentes. Vou furar o papel para que respirem –, esclareceu a menina, como se falasse de um ser vivo em risco de ser sufocado pelo embrulho.

Paguei 17 euros pelas duas fogaças (dez pela grande, sete pela média). Achei caro e perguntei se era assim em todo o lado. Foi-me dito que sim. “Queres genuíno e bom, paga”, pensei, supondo que o selo de certificação como garantia de qualidade tenha, a dada altura, inflacionado o preço.

Entrelacei os dedos da mão esquerda nos laços amarelos e dirigi-me à saída. O senhor que seguia atrás de mim trazia as mãos ocupadas com dois sacos e segurei-lhe a porta para que saísse. Parecia triste. Sorri-lhe. Vale sempre a pena sorrir a um desconhecido de cara triste. Porque ao fazê-lo, em algumas (felizes) ocasiões, o rosto do desconhecido transforma-se e há uma luz que se acende nas suas feições. Mesmo que seja um acendimento breve e ligeiro, percebe-se um acendimento. E não há como um sorriso para nos relembrar como andamos todos ao mesmo neste mundo.

– Vai bem servido –, disse-me, retribuindo-me o sorriso.

– Espero que sim. Vim com recomendação –, respondi.

– Sabe o que isso é?

– Bem, são fogaças, pão doce, creio. O topo é uma reprodução da torre de menagem do castelo, não é? –, perguntei, convicto do que dizia.

– Sim, mas é mais do que isso.

– Então conte-me lá –, pedi.

(Mesmo com tempo contado, não resisto a uma história, sobretudo quando o narrador me parece triste. Nunca se sabe se a pessoa à nossa frente está mesmo a precisar de contar uma história.)

– A fogaça é o cumprimento de um voto ao mártir São Sebastião, que protegeu a povoação durante um surto de peste que matou muita gente. Em troca de proteção, o povo prometeu-lhe um pão doce, a fogaça.

– Desconhecia. Só sou guloso e gosto de provar as iguarias típicas das terras por onde passo. E reparei nuns cartazes que anunciam a Festa das Fogaceiras para breve, certo?

– Sim, é uma tradição com mais de 500 anos que se repete todos os anos a 20 de janeiro. Benzem-se as fogaças e realiza-se uma procissão muito bonita, com as meninas vestidas de branco, que percorre as ruas do centro histórico.

– A ver se cá venho ter consigo nessa altura para partilharmos uma fogaça –, brinquei, à procura de lhe sacar mais um sorriso. Ao mesmo tempo, tentava adivinhar-lhe a idade: “100 anos? 200? 500?!”

– Vamos a isso, mas fique a saber que as fogaças se partem à mão, se tiver problemas com isso tem de comprar uma só para si –, rematou o senhor António, sorrindo com malicia enquanto abria a porta do carro estacionado em segunda fila.

Foi a salivar com o aroma das fogaças que conduzi até ao gigantesco Europarque de Santa Maria da Feira, onde cheguei a horas do meu compromisso.

Só provei a fogaça ao fim do dia. Deliciei-me. O sabor é suave, sendo fácil de adivinhar os ingredientes utilizados na confeção: farinha de trigo, açúcar, ovos, fermento, água, manteiga e sal. (Fui confirmar.) No entanto, a receita pode variar ligeiramente entre famílias ou regiões. Há quem utilize erva-doce, raspas de limão ou canela. Mas o segredo de uma boa fogaça, confidenciaram-me na Confeitaria Rainha 6, está na qualidade dos ingredientes e nos respetivos procedimentos de mistura.

Contou-me o senhor António que, por ocasião da Festa das Fogaceiras, a tradição manda que os feirenses enviem fogaças aos familiares e amigos que se encontram longe.

Não se acanhem, amigos feirenses…


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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