Nas minhas notas pessoais escrevi: a vida está cheia de tensão desnecessária. Estou muito ciente disso, mas eu própria não a consigo evitar. Às vezes é como se tivéssemos prazer em que essa tensão venha ter connosco e nos apanhe e nos vire do avesso. São três ou quatro piruetas desnecessárias até voltarmos de novo ao nosso lugar. Normalmente é no dia a seguir que percebo a real dimensão do problema – às vezes não era nenhum.
Estamos mesmo a viver um momento particularmente difícil: somos levados por mentiras facilmente desmontáveis e por demagogia tão oca porque não queremos pensar muito. Queremos que alguém o faça por nós. Que alguém resolva por nós. Que alguém nos dê a solução antes de, verdadeiramente, enfrentarmos o problema. Esta sociedade, a mesma que nos alerta incessantemente para os perigos da Inteligência Artificial, é a mesma que com ela se diverte a fazer fotografias: mais bonitos, mais velhos, mais capacitados.
Nós vamos lançando para o exterior pequenos avisos que sublinham a maior das evidências: custa muito viver; é melhor fazer de conta; é melhor fazer de conta que já passámos pelas coisas ou então que não vivemos nada para que isso não fique marcado na nossa pele. Estamos cheios de medo de que a vida fique impressa nos nossos rostos. Ludibriamos a História com o bisturi, à espera da resposta que, eventualmente, provocaremos nos outros: “não pareces nada ter essa idade”. Afinal o que queremos? Queremos viver e não ter marcas? Queremos lutar, mas sem feridas? Queremos melhorar, mas sem pensar demasiado? Talvez seja tudo isto.
Por estes dias dou por mim maravilhada com a actriz Meryl Streep. São 74 anos cheios de cinema, espero que na vida pessoal dela também. Isto porque o cinema nos acontece sem ficar registado. O cinema dos ínfimos pormenores. O cinema sem a tal tensão que nos cobre os dias. Pequenos momentos que ficam registados só dentro de nós.
Lembro-me de Meryl Streep na série “Holocausto”. Estávamos no início de 1979. Eu ainda não tinha idade para ver um drama infelizmente real como este, mas a minha curiosidade já era maior do que eu. Vi. Lembro-me de um cobertor amarelo com remate acetinado onde me escondia quando o medo se antecipava. Nunca mais me esqueci desta série. Tinha sete anos. Meryl Streep fez muitos filmes depois. Muito bons e medianos. Apanhei mais tarde com maturidade, ainda que desse tempo, coisas poderosas como “O Caçador”, “Kramer contra Kramer”, “A Escolha de Sofia”. Vieram as comédias. Demos Streep como garantida. Às vezes recusámos a sua abrangência para a elevar depois na sua simplicidade tão profunda e real, “As Pontes de Madison County”, “Um Quente Agosto”.
Poderia aqui enumerar dezenas de filmes, mas não preciso. Nunca achei Meryl Streep tão bela como agora. Fico radiante a admirá-la na sua verdade, nas suas mãos reais tão despojadas. No rosto necessariamente vincado mas tão suave. Há ali uma felicidade sobre a qual não tenho pistas: sou tentada a pensar que se cumpriu a verdade no essencial.
Há dias, vi inúmeras actrizes belíssimas (actrizes e atores) na cerimónia dos Globos de Ouro, que acende mais cedo as luzes para os Óscares. Dessa cerimónia retive Meryl Streep. Demorei décadas a olhar para ela com esta reverência. Como se, perante este mundo do avesso, ela emergisse com aquele sorriso manso e ao mesmo tempo forte para dizer que está bem ali. Não abdica da sua verdade. Não quer fotografias forjadas que a mostrem melhor. A vida que tem vivido basta-lhe.
Comecei a falar da tensão destes dias encriptados, para acabar com esta imagem do sorriso de Meryl Streep. Não tinha pensado em nada disto até começar a escrever. Há aqui um ponto em comum: a busca pela verdade, sem fugir ao que vivemos e ao que temos para viver.
Talvez quem sorria por último sorria melhor.
O coração ainda bate.