O Coração Ainda Bate. Dias perfeitos
Inês Meneses fala dos pequenos prazeres que ignoramos.
Lembro-me bem do tempo em que vivi sozinha, entre amores, ainda sem filhos e no fulgor dos 30 anos. O trabalho preenchia-me, como me continua a preencher, mas lembro-me de uma angústia chegar ao fim-de-semana, quando no ar pairava a incerteza de um jantar, de uma saída qualquer. Os amigos que namoravam, os outros que tinham família.
Há uma altura das nossas vidas em que não percebemos que temos tudo para ser felizes, independentemente de estarmos sozinhos ou acompanhados. Eu era capaz de ficar muitas vezes presa em casa, numa inércia por justificar, semelhante ao momento em que entramos no mar e tememos a temperatura da água. Há quem vá à água e desista. Há quem mergulhe sem pensar. As pessoas são diferentes e o tempo também nos fará diferentes à sua passagem.
Foi ali, muito no início do novo século: ficava em casa a desenhar um plano para os meus dias inúteis (por oposição à semana cheia) e muitas vezes dava por mim sem ter ouvido uma única voz, um silêncio que só interrompia para falar com a minha mãe ao telefone. Já era a música que me salvava nessa altura. As canções foram, muitas vezes, os amigos que nos faltaram, um amor que prolongámos para além do final. Um instante de felicidade até quando o desfecho foi triste.
Havia sábados em que ia ao cinema. Às vezes, exposições. Nessa altura não tinha ainda amadurecido o suficiente para me deleitar com pequenos prazeres: o de fazer, sozinha, uma refeição fora. O de estar a ler um livro, indiferente ao ruído do café.
O tempo é precioso para nos capacitar para o hedonismo e eu tornei-me militante dos pequenos prazeres. Nessa altura o ócio aparecia como uma interrogação no horizonte. Hoje chamo-lhe um figo. Com um copo ao lado.
Escrevo sobre esses tempos, depois de ter visto o filme de Wim Wenders, “Perfect Days”. Fui ao cinema com a minha filha e viemos para casa a levitar. O filme segue Hirayama, um homem que limpa casas de banho no bairro de Shibuya, em Tóquio. Todos os dias cumpre os seus rituais com uma delicadeza que nos questiona: é possível sermos tão dóceis num mundo que teima em ser agreste? Hirayama, nos seus tempos livres, aproveita o prazer de ficar imerso num banho público, de ler até adormecer ou de ouvir as suas velhas cassetes guardadas como se fossem do dia anterior. Há Patti Smith, Lou Reed e os Velvet Underground, Van Morrison, Nina Simone ou os Animals. A dada altura já só queremos ser aquele homem que aprendeu a viver com pouco e a iluminar-se com as pequenas surpresas dos dias: as copas das árvores que regista na sua máquina fotográfica analógica, o que o leva depois a revelar e escolher as fotografias que quer guardar; os livros que compra a um euro (a minha filha, que estuda japonês, encarregou-se de me fazer a conversão) e que lê, um atrás do outro, até à próxima compra. Tudo o que Hirayama faz está ao nosso alcance, mas nós preferimos invejar uma cultura que ainda vamos conhecendo aos poucos a tentar incorporá-la no nosso dia-a-dia.
O filme tem tantos detalhes belos que se assemelha a um poema lido durante duas horas. E fica em nós como um mantra.
Aos 30 anos eu não tinha a capacidade de apreciar sozinha a minha vida. Não percebia que eu podia ser a minha melhor companhia, o silêncio, um bálsamo, e o trabalho apenas uma ponte para me levar ao outro lado: esse, onde habitam os pequenos prazeres que fazem a vida valer a pena.
É mais fácil ver agora a vida de outra forma. Talvez essa seja a verdadeira vantagem de envelhecer: perceber que o que nos dá satisfação pode não estar sempre num centro comercial ou num hipermercado, num restaurante caro ou numa viagem excêntrica. Rejeitamos o fácil e acessível como se não fosse suficiente para nos preencher o vazio.
Há que aprender com Hirayama. Mesmo que seja só um filme.
O coração ainda bate.