“Esta é a madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo.”
Evocando as palavras de Sophia de Mello Breyner Andresen sobre o 25 de Abril de 1974, José Gardeazabal transfere-as para outra festa: a do Natal. E é na voz de um avô a perder a memória que se escuta: “Primeiro Natal, aquele primeiro Natal, inteiro e limpo.”
O livro é narrado pela neta: “Para começar a história, o Natal aproxima-se e o meu avô não sabe o que é o Natal. Está sentado numa cadeira de baloiço. Parece o Pai Natal, sem a roupa. Está esquecido a um canto, em silêncio, duas vezes esquecido. Esquecido porque se esqueceram dele e esquecido porque não se lembra do Natal.”
Mais adiante, o avô parece afinal lembrar-se do Natal de há 50 anos, mas não foi em Dezembro, foi em Abril: “Esse primeiro Natal foi um vulcão.” Quando o avô não está “no seu labirinto” e resolve falar, a neta é a única que o escuta: “Um dia inesquecível. Uma vitória. O povo na rua, a guerra no fim, o dia em festa. O dia do futuro… Há poucos dias assim do futuro…”
A menina, depois de o ouvir falar, pensou: “Mas isto não é um Natal, é uma revolução.” No entanto, decidiu acreditar no avô: “Era Natal.”
Uma forma subtil e poética de assinalar os 50 anos do 25 de Abril de 1974, que se comemoram no ano que se aproxima.
Vermelho do princípio ao fim
Susana Matos conta ao PÚBLICO como foi ilustrar as palavras de José Gardeazabal: “Foi revisitar dois lugares que nunca me passou pela cabeça que pudessem ter tanto em comum, o Natal e o 25 de Abril. Vermelho é a cor que têm em comum e que está presente no livro do princípio ao fim.” Os cravos também.
Assim que leu o texto, surgiu-lhe a palavra “ternurento”. E explica como quis transpô-la para o seu trabalho: “O convite ao olhar o outro, escutar o outro, à esperança, à solidariedade, à liberdade, democracia, humanidade e outras coisas mais que o livro nos traz a todo o momento tornam-no ternurento e muito emotivo e foi com esses sentimentos que o ilustrei.”
A ilustradora diz ter-se esforçado para que o tempo e as memórias estivessem presentes nas imagens. Conseguiu. “Memórias de um avô com muitas experiências e histórias para contar. Algumas são fortes e muito presentes, outras vão-se desvanecendo num traço frágil que desaparece no papel. A técnica de desenho a lápis de cor e aplicação digital da cor é propícia a esse efeito.”
A também professora de Educação Visual explica que convida o leitor “a completar o que fica vazio, o que está esquecido (como a menina que está em silêncio)”, conta ainda que só conheceu o autor do texto no dia do lançamento do livro, na livraria Papa-Livros (Porto), e que a sintonia sobre os valores transmitidos surgiu naturalmente. “Chegámos todos à conclusão de que precisávamos muito (todos!) de uma história assim, que, acima de tudo, nos pusesse novamente a falar uns com os outros.”
No livro, diz a rapariga: “O meu avô gosta de repetir a palavra todos. Todos, todos, para não deixar ninguém para trás.”
Aquele Natal Inteiro e Limpo é de facto um livro terno e comovente, mas também informativo e formativo sem tiques didácticos. Neste sábado, José Gardeazabal e Susana Matos vão estar na Hipopómatos na Lua, Biblioteca Municipal de Sintra, às 15h, para nova apresentação do livro, acompanhados pela editora da Kalandraka, Margarida Noronha.
Sobre ela, diz Susana Matos: “A Margarida afinal conhece-me melhor do que eu pensava (tínhamos tido apenas um contacto), pois percebeu perfeitamente que iria identificar-me bastante com o texto.” É isso que fazem os bons editores.