Ninguém é de ninguém (nem o gato)
Um livro sobre a liberdade, a família, o respeito e a não-violência. “Para ser lido por todos”, diz o autor e editor, Pedro Seromenho.
Um gato recebeu o nome Ninguém para ser protegido de um vizinho que odiava bichanos. Imediatamente somos transportados para a Odisseia de Homero, quando Ulisses diz chamar-se Ninguém e assim conseguir escapar dos ciclopes. Mas as crianças não sabem disso ainda, nem precisam para entender esta história delicada.
O narrador, uma criança, gostava muito que Ninguém fosse só dele: “Para o embalar à noite. Mas estaria a ser tão egoísta quanto a minha prima, que nunca partilha os seus brinquedos comigo.”
Há-de conseguir que o gato passe a pertencer à sua família, que lhe dará aconchego e também o receberá. Mas antes, num regresso a casa, o miúdo encontra a mãe com a cara arranhada e a chorar. “Perguntei quem lhe tinha feito aquilo e ela respondeu-me: — Ninguém! Fiquei boquiaberto e ainda me custa a acreditar que tenha sido o gato. Quando o encontrar, terá de se explicar!”
Diz o autor do texto, que é também o editor da Paleta de Letras, Pedro Seromenho, sobre este seu trigésimo título: “É sobre o respeito, a família, a tolerância e a não-violência. Poderia dizer que o livro é meu ou da Soraia Oliveira, mas a verdade é que nada nem ‘Ninguém’ é de ninguém. Trata-se de um livro para ser lido por todos, sejam pequenos ou graúdos, porque os grandes valores não distinguem crenças, raças, idades e tamanhos.”
Ninguém vai ter dois lançamentos neste fim-de-semana, no âmbito do encontro de ilustração Braga em Risco, no Salão Medieval da Reitoria da Universidade do Minho. Neste sábado, às 21h00, numa parceria com a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, quando se assinala o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres (25 de Novembro), e no domingo, às 14h30.
Conversa sobre violência e liberdade com os pequenos
A ilustradora Soraia Oliveira recorda ao PÚBLICO as suas apreensões na realização deste trabalho: “Fiquei com algum receio por ser um tema tão delicado. Contudo, sabia que podíamos criar algo bonito e que conseguisse incitar à conversa com os mais pequenos, não só sobre violência, mas também sobre a liberdade de simplesmente sermos nós próprios.”
Perante um texto “subtil e leve”, com pistas sobre um tema triste, mas em que não se geram imagens explicitamente violentas, encontrou o “mote para a criação das ilustrações do livro”, descreve por email. E prossegue: “Sabia desde início que não queria fazer imagens violentas, que iria usar formas femininas e delicadas e que as cores principais seriam roxo (cor utilizada para a consciencialização sobre a violência doméstica) e rosa (para reforçar a delicadeza e feminilidade).”
Outras certezas da ilustradora, nascida em 1992: “Sabia também que não iria mostrar muito a mãe (representando o isolamento que muitas mulheres sofrem quando se encontram numa situação de violência doméstica). O próprio menino aparece muitas vezes sozinho, tendo apenas Ninguém ao seu lado.”
Sobre o nascimento das ilustrações, conta: “A criação das ilustrações para o livro foi muito fluida e orgânica. Assim que comecei a desenhar o storyboard, as imagens foram surgindo e assim consegui criar a minha interpretação da história.”
Uma das suas preocupações era a de “fortalecer o tema principal” e explica como: “O Ninguém nunca aparece dentro de casa, para assim reforçar a ideia da liberdade dele — tanto que o livro termina no jardim da casa. Há um momento na história em que Ninguém adormece com o menino e a mãe. Optei por representar um sofá numa floresta para, mais uma vez, reforçar essa mesma liberdade, porque Ninguém é de ninguém.”
Ficamos a saber que Soraia Oliveira optou por “técnica mista”, uma prática cada vez mais comum entre os ilustradores, que assim potenciam a comunicação com os leitores através de várias formas de expressão plástica.
Explica a designer gráfica e mestre em Ilustração e Animação pelo Instituto Politécnico do Cávado e do Ave: “Desenho digital e desenho manual, onde introduzo diferentes materiais, como grafites, lápis de cor, acrílicos, aguarelas e marcadores.”
Para terminar, a ilustradora diz-se muito feliz com o resultado deste projecto: “Penso que poderá criar momentos de conversa e reflexão com os mais pequenos tanto sobre o tema principal, quanto sobre o respeito pelo espaço e liberdade dos outros.”
No final, depois do pânico da criança pelo desaparecimento do gato, diz-lhe a mãe: “— Filho, ele regressará. Esta é a sua casa. Foi apenas passear. Sei que gostas muito dele, mas Ninguém é de ninguém.”
Uma mulher valente e sobrevivente.