O Coração Ainda Bate. O prazer

Inês Meneses escreve sobre o prazer que não se mistura com ambição.

Quem era eu quando apanhava comboios de madrugada para ir trabalhar para a rádio? Agora não sei bem. Nem me lembro do que queria. Acho, honestamente, que só quis apanhar a viagem desse prazer de estar na vida. E esse desafio não é fácil por várias razões: o prazer não está acessível a todos, muitos penitenciam-se por dar primazia ao prazer, alguns não o conseguem encontrar e outros, ainda, preferem, de longe, trabalhar arduamente e esperar pela compensação. Eu nunca pensei na compensação, já que a compensação era perceber que o que tinha pela frente era justamente prazer. O prazer de estar, de fazer acontecer, o prazer de ter ao meu lado outros que pensavam como eu.

O que é o prazer? Não se mistura com ambição. Tem baixas expectativas. Não é eterno, mas, perante a sua extinção, inventamos de imediato a sua continuidade. O prazer enrosca-se em nós como um gato e não nos larga até deixarmos de o querer.

Chamamos prazer ao que não implica dependência. Aquilo de que não somos reféns. Deixaria imediatamente de ser um prazer se vivêssemos à míngua dele.

Eu ia pelo prazer para a rádio. Ia trabalhar em noites longas que terminavam de manhã. Apanhava o último transporte da noite e o primeiro da manhã. Tinha 18 anos nessa altura. Fazia isto aos fins-de-semana. Nos dias úteis procurava o prazer do teatro, uma experiência que resultou sobretudo nesse contentamento (que mantenho) de conhecer tanta gente. É deles que me lembro. Como na rádio nos lembramos de quem nos ouve. Gente que inicialmente tem um nome, depois uma voz e, a seguir, passa a ter um rosto. Ouvintes e radialistas confundem-se na sua missão, mas o prazer atravessa ambos. Não me lembro nunca de ter desejado ser famosa. Nem cheguei a ser.

Quando hoje ouço, vezes sem conta, que os miúdos querem ser famosos ou influencers, fico assustada. Porque não estamos a falar de prazer, mesmo que este possa parecer imediato e fácil. Estamos a falar de pessoas subjugadas a um sistema que promove o descartável, o acessório: a roupa de que não precisamos, o espectáculo recomendado em que eles não acreditam, o creme que vai para a prateleira onde estão mais trinta. A placa que alisa o cabelo e que será usada uma vez para rapidamente cair no esquecimento e no caixote do lixo. Tudo tem vida curta nesta era. E as pessoas nem param para pensar se o que estão a fazer é válido, se lhes faz bem, se lhes trouxe algum prazer.

Ninguém apanha comboios para ser famoso. Vem de comboio quem envelhece antes do tempo para garantir um ordenado mínimo, que já não chega para pagar uma casa que fica longe do emprego. Inventam-se mais trabalhos: comida que se faz para fora, bordados, camisolas tricotadas com horas pouco dormidas. Estas pessoas que são agora a maioria não conhecem o prazer: sonham em dar um futuro melhor aos filhos, que, se calhar, podem querer ser famosos. E quem lhes vai negar a possibilidade do sonho?!

Penso muito na vida dos outros, até dos que não conheço. Como se organizam, como têm dinheiro para enfrentar os dias, o que comem. O que é visto por eles como um luxo. Talvez por isso me tenha vindo à memória uma mulher que conheci de forma fugaz e que me disse que estava a trabalhar ali (era um concerto de grandes dimensões), mas que tinha acordado às 05h30 para abrir o supermercado. Lembro-me muitas vezes dela. Reencontrei-a depois noutros palcos e perguntei-lhe: "Foi dia de acordar de madrugada?" “Claro! Às 05h30 já estava a trabalhar!” Há muitas mulheres e homens que vivem de e para o trabalho. Foram engolidos por este sistema que esmaga os que menos têm enquanto expande a vida dos mais ricos. Há gente que nunca soube o que era acordar de madrugada para ir trabalhar.

Tive muita sorte.

A sorte apanhou-me no meio do prazer.

O coração ainda bate.

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