Perder o pai ou a mãe na vida adulta

Os adultos órfãos também precisam de algum colo de outros adultos que naquele momento possam escutar e estar presente. Nada de palmadinhas nas costas e “Liga-me, se precisares de falar”.

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Voltar à rotina pode ajudar no processo de continuação da vida depois do recolhimento após a perda Getty Images
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A morte de um ente querido é um momento de grande tumulto emocional que pode causar um impacto profundo na vida de uma pessoa. É consensual na investigação sobre o luto que não há forma certa ou errada de encarar este processo – há sim, uma forma individual, mais ou menos dolorosa, em que a aceitação de todas as emoções é um elemento relevante e que promove o ajustamento. Devemos, então, viver a morte como uma experiência singular, dado que cada um de nós manteve uma relação única com a pessoa que morreu e construiu com ela memórias comuns.

Perder alguém na idade adulta ou na infância encerra em si processos diferentes, ambos merecedores de atenção. Quando falamos do luto de uma criança que perdeu um pai/mãe ou outro cuidador, a mobilização dos adultos é imediata, procurando formas de apoiá-la e até de compensá-la, de modo a que tenha condições para prosseguir com uma vida funcional. A criança terá, então, de ser ajudada a reorganizar a sua vida sem a presença física da pessoa que morreu, regulando-se, construindo ligações com os outros e descobrindo novas formas de satisfação e de alegria, mesmo perante a morte. A intenção é que continue a amar aquela pessoa através do pesar e da saudade, caminhando, desejavelmente, para a construção de um espaço próprio para quem morreu nas suas memórias.

Por sua vez, o olhar sobre o luto do adulto é diferente, espera-se que os adultos tenham outra bagagem emocional para lidar com a morte, dado o seu nível de desenvolvimento. Porém, para muitos, a perda de alguém significativo, nomeadamente, os seus pais, pode não se configurar um processo fácil. Em alguns casos pode, efetivamente, representar uma experiência com potencial patológico, devido a um conjunto de fatores, como sejam, aspectos relacionados com a personalidade da pessoa, o suporte social recebido, o tipo de vínculo que tinha com a pessoa que morreu e até o momento de vida em que a pessoa enlutada se encontra aquando do acontecimento. Neste caso, a vulnerabilidade à perda pode variar, sendo que perder alguém hoje pode ser completamente diferente do que seria daqui a três ou mais anos.

Segundo o curso natural da vida, os pais morrem antes dos filhos e, por ser este o caminho mais esperado, muitas vezes as pessoas acabam por dar menos atenção aos sentimentos associados a este tipo de perda dos adultos, predispondo a pessoa a uma experiência mais solitária e eventualmente mais dolorosa.

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É importante encontrar formas saudáveis de ajudar a pessoa a expressar os seus sentimentos e a partilhar memórias e histórias DR

A morte de quem amamos remete-nos para a dura e cruel noção da irreversibilidade, deixando claro que nunca mais vamos ouvir, ver, sentir, falar, ou mesmo discutir, com aquela pessoa. O contacto é quebrado e, de repente, damos por nós a sentir falta até dos telefonemas outrora considerados aborrecidos, ou, como já ouvi alguns adultos a relembrarem, com perguntas infantis para quem tem mais de 30 anos: “Já comeste?”; “Leva casaco!”; “Não venhas tarde”. Este era, na verdade, o pedido constante da minha mãe, “Não venhas tarde”, que eu teimava em não cumprir e que hoje faz-me desmedida falta.

Perder o pai ou a mãe na vida adulta obriga-nos a repensar o significado do que foi a nossa vida com aquela pessoa e do que vai ser a partir de agora. É natural sentirmo-nos sozinhos, abandonados, confusos, com medo e até, de repente, pensar em coisas que nunca nos tinham assolado antes: “Será que vou conseguir educar a minha filha sem a minha mãe?”; “Vou ter de resolver tudo sozinha daqui para a frente?”. Receios e dúvidas, sentidas como ridículas ou disparatadas, mas que cabem no espectro da normalidade, passam vezes sem conta pela nossa cabeça. Somos humanos e é natural sentirmo-nos desamparados quando alguém que amávamos e com quem sabíamos que poderíamos contar deixa de estar acessível emocional e funcionalmente.

Pouco depois da morte, parece que a pessoa está em todo lado. Na verdade, continuamos à sua procura, desde quando tomamos o pequeno almoço e vemos a sua chávena preferida até a hora do jantar, quando achamos que é ali que nos vamos encontrar. Sentir a presença perante a ausência pode ser reconfortante.

São esperados sintomas físicos, emocionais e comportamentais desde o momento imediato do acontecimento até chegar a um ponto de relativa estabilidade, ao fim de cerca de 6/8 meses. Insónias, irritabilidade, raiva, dores no corpo, tristeza, alterações de apetite ou mesmo pensamentos de desistência devem ser monitorizados para evitar que se agravem.

Importa, então, respeitar o que estamos a sentir e expressá-lo. Para isto ser bem-sucedido precisamos, mesmo sendo adultos, de quem nos acolha e nos ajude a prosseguir a vida. Os adultos órfãos também precisam de algum colo de outros adultos que naquele momento possam escutar e estar presente. Nada de palmadinhas nas costas e “Liga-me, se precisares de falar”, esta não é forma de estar presente. Um telefonema uma ou duas vezes por semana, dependendo da proximidade com a pessoa enlutada faz-lhe muito bem, por mais que a si pareça irrelevante ou que sinta que a pessoa não está a precisar.

É comum a culpa também estar presente no processo de luto, sendo mais ou menos forte de acordo com a relação que tínhamos com a pessoa que morreu. É importante entendê-la como uma reação normal, mas que pode ser imobilizadora quando excessiva, sobretudo, quando ficaram coisas por resolver, dizer ou fazer com a pessoa que morreu.

O caminho que se segue é de adaptação e de continuação da nossa história, agora sem aquela pessoa presente. É difícil? Sim, e é exatamente por isso que a família e os amigos devem acolher as dores da pessoa em luto e possibilitar que ela se permita viver as emoções fortes que estão presentes, sem vergonha ou medo. É importante encontrar formas saudáveis de ajudar a pessoa a expressar os seus sentimentos e a partilhar memórias e histórias, como através da escrita, da arte, da música ou simplesmente conversando. Isso pode ajudar na construção de um sentido de continuidade e ligação com a memória da pessoa falecida.

Voltar à rotina pode ajudar no processo de continuação da vida depois do recolhimento após a perda. Com o tempo, a tristeza e a saudade vão-se amenizando e dão lugar à aceitação da realidade da perda e à recolocação da pessoa falecida, integrando-a de forma diferente na nossa vida.

O desafio é mantermo-nos em contacto sem poder contactar efetivamente. Para isso, pode-se recorrer às memórias, às fotografias, aos rituais e aos sentimentos bons que ficaram.

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