A Carmim guardou 1000 garrafas do tinto Garrafeira dos Sócios para relançamentos futuros

Como Portugal não tem um segundo mercado de vinho, só as empresas podem guardar garrafas para segundos ou terceiros lançamentos. A Carmim leva a estratégia a sério.

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João Caldeira é o CEO da Carmim; a cooperativa guardou mil garrafas 1000 garrafas do icónico Garrafeira dos Sócios para lançar faseadamente Direitos Reservados
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O mundo está deveras perigoso, mas, por cá, as últimas semanas e meses têm sido interessantes no sector do vinho. Continuam as aquisições de quintas e concentrações de alguns grupos empresariais (uns novos e outros não) e continuam os rumores de outros negócios que se concretizarão em breve; a estratégia dos vinhos a preços estratosféricos soltou-se à velocidade da luz (é ver quem dá mais); há produtores que já não têm medo de lançar vinhos em garrafas de grande formato; há produtores que descobriram o conceito de clube exclusivo; há produtores que regressam aos balões/cubas de cimento e, finalmente, há produtores que assumem a estratégia de guarda de garrafas de uma mesma colheita para futuros relançamentos. Portanto, não se pode dizer que o universo do vinho em Portugal seja uma pasmaceira.

Cada um destes temas será abordado individualmente aqui no Terroir, mas, por agora, interessa-nos a estratégia da administração da Carmim (Cooperativa Agrícola Reguengos de Monsaraz) que, no lançamento do Garrafeira dos Sócios 2019 (22 mil garrafas), garantiu que vai guardar 1000 garrafas desse vinho icónico da cooperativa alentejana para outros lançamentos faseados.

A estratégia dos segundos lançamentos é algo que defendemos há tanto tempo que nos coloca na categoria dos chatos, mas, em nome da educação do gosto dos consumidores, pouco nos importa. De resto, é por causa dos consumidores que pensamos desta forma. Não há nada mais aborrecido do que ir a lançamentos de vinhos e provar colheitas recuadas que estão num nível fantástico, mas que não poderão ser apreciadas por gente educada nesta matéria porque tais colheitas já não existem. Sim, servem para os jornalistas perceberem a capacidade de evolução do vinho em causa e para poderem dar pistas ao mercado, mas é pouco. No fundo, toda a gente deveria poder comprar e provar esses vinhos com tempo de garrafa — vinhos misteriosos.

Por exemplo, em menos de um ano provamos, por duas vezes, colheitas recuadas do tinto Garrafeira dos Sócios, da Carmim, sendo que a última ocorreu recentemente no lançamento da colheita de 2019, em Lisboa. Durante o almoço, jornalistas e convidados tiveram a oportunidade de provar os Garrafeira dos Sócios de 2013, 1996 e 1993. Se o primeiro vinho anda está novo, as colheitas de 96 e 93 estão sedutoras, misteriosas e desafiantes. Sempre que levámos o copo ao nariz e à boca, descobrimos novos aromas e novos sabores por via do contacto do vinho com o oxigénio. O 96 revelava notas de bosque e cogumelos, com uma boca ligeiramente alicorada, enquanto o 93 caminhava pelo lado do eucalipto e das folhas de tabaco, com a boca fina e sedosa.

Além do prazer que estes vinhos dão à mesa, são interessantes para matarmos saudades do perfil de certos tintos alentejanos que se bebiam nos tempos em que não havia pressa no lançamento das garrafas para o mercado. Sim, na composição do lote passaram a entrar castas que outrora não existiam no Alentejo, mas, com o tempo — e vale a pena sublinhar o tempo —, o terroir alentejano está cá todo, sendo que, e para tornar tudo isso mais interessante, o 96 o 93 são vinhos bastante distintos. Ou seja, espelham os anos climáticos e a arte do lote dos enólogos da Carmim. O Garrafeira dos Sócios (nascido em 1982 e inicialmente só destinado aos sócios) é um tinto que conta histórias, que são ingredientes tão importantes como as castas, os solos, a maturação fenólica, fermentações ou as barricas novas onde o vinho estagia.

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No lançamento do Garrafeira dos Sócios 2019, os jornalistas puderam provar também as colheitas de 2013, 1996 e 1993 do icónico vinho da Carmim Direitos Reservados

E é por isso que os consumidores que não gostam de vinhos fotocópia devem aplaudir a estratégia de guarda de 1000 garrafas da colheita de 2019 para relançamentos futuros. E por duas razões: aqueles que têm condições térmicas para guardar vinhos já sabem que a probabilidade de os vinhos evoluírem muito bem é alta, pelo que podem comprar agora várias garrafas e fazer a gestão das mesmas no tempo e a seu belo prazer; os que vivem em casas que são um gelo no Inverno e um forno no Verão, bom, se calhar o melhor que fazem é comprar umas garrafas agora e outras à medida que a Carmim for lançando o vinho (a preços necessariamente mais elevados).

Para infelicidade dos enófilos, Portugal não tem, ao contrário do que acontece em França, por exemplo, um mercado de segunda venda (negociantes que compram colheitas que sabem que evoluirão muito bem e as laçam depois ao longo do tempo). Por outro lado, a maioria das empresas portuguesas, por questões de cultura organizacional, por questões de tesouraria ou por iliteracia do grosso dos consumidores, nem quer ouvir falar em segundos lançamentos de uma mesma colheita. São razões atendíveis, claro, mas o sector do vinho terá de perceber que, num negócio altamente competitivo e com uma padronização preocupante de perfis de vinhos, quem fizer a diferença vai marcar pontos e ganhar notoriedade e dinheiro.

O facto de, num país vitícola ainda preconceituoso, ser uma cooperativa a assumir esta estratégia de guarda de vinhos a esta escala é algo que merece festa. Ah e tal, a Carmim tem muito vinho e factura 22 milhões de euros por ano. Não interessa. Assume o risco, muda mentalidades, acaba com preconceitos, cria ruído comunicacional duas vezes para uma mesma colheita, aumenta o preço do vinho no segundo lançamento, consegue remunerar melhor os sócios, eleva a marca Alentejo e dá mais prazer aos consumidores. Convenhamos, é muita coisa para uma só marca.

Nome Garrafeira dos Sócios 2019

Produtor Carmim

Castas Alicante Bouschet, Touriga Nacional e Cabernet Sauvignon

Região DOC Alentejo

Grau alcoólico 15,5%

Preço (euros) 25

Pontuação 94

Autor Edgardo Pacheco

Notas de prova É um tinto alentejano moderno. Ou seja, concentrado, com notas balsâmicas, com imposição da casta Alicante Bouschet (aromas de bosque), aromas de frutos maduros e eucalipto. Na boca, ataque doce, estrutura, taninos firmes e notas de especiarias que dão vida ao vinho. Lá está, nesta fase, não é um vinho que nos coloque nas nuvens, em parte por causa dos 15,5% de álcool (já não se usa) e por causa da fruta aos saltos e da madeira nova, mas, pelo histórico de provas que temos com outras colheitas recuadas, não é difícil de imaginar que, daqui por cinco anos, podemos estar perante um tinto senhorial. Quem puder que o compre e guarde.

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