O Garrafeira dos Sócios da Carmim pode iniciar uma pequena revolução
A Carmim decidiu – uma salva de palmas – que por cada edição futura do Garrafeira dos Sócios vai guardar 10 mil garrafas para lançamentos tardios. Agora é só esperar que outros façam o mesmo.
Passou a ser moda no sector do vinho iniciar-se o lançamento de novas colheitas com provas verticais dessa mesma marca. É, por diferentes razões, uma bela moda. Tem uma componente didáctica, exalta o ego do produtor que ouvirá sempre um elogio à colheita de 2005 ou 2007 e, mais importante, transmite ao mercado a ideia de que vale sempre a pena esperar para consumir determinadas marcas no tempo certo.
Cansa repetir a tese, mas não há volta a dar: em Portugal continuamos a cometer vinicídios, no sentido em que não sabemos esperar pelo período óptimo de consumo dos vinhos (tintos ou brancos). É frustrante ouvir amigos que compram marcas caríssimas dizerem com alegria que já beberam, por exemplo, o último Pintas de 2019 só porque sim. Porque souberam que o vinho foi muito bem pontuado cá dentro e lá fora ou porque querem fazer boa figura com os amigos. Como é evidente, perdem a oportunidade de sentir toda a riqueza e a complexidade que só o tempo dará a esse vinho. É o tempo que torna um grande vinho num vinho extraordinário. Nunca a pressa.
Sabemos que a causa do problema está na necessidade de facturar por parte da produção e do comércio. A vida é o que é. Mas também é certo que começa a ser esquisito participar em provas verticais, descrever grandes vinhos e, depois, ter que dizer ao leitor que, ah e tal, infelizmente estes grandes vinhos que agora deviam ser bebidos já não existem porque o produtor – bom para ele – vendeu tudo. Já eram. Em certo sentido pensamos que tais textos serão uma pequena ofensa para quem gosta genuinamente de vinhos com idade mas não os pode comprar. As nossas desculpas.
E foi com esse espírito que nos apresentamos em Reguengos de Monsaraz para, na Carmim, fazer uma pequena vertical do Reguengos Garrafeira dos Sócios – o vinho premium da casa. Seria mais do mesmo. Na volta, não foi.
O Garrafeira dos Sócios foi criado em 1982, por esse pioneiro que foi Paulo Lourenço, e tinha como destino retribuir o esforço e a dedicação dos sócios da Cooperativa Agrícola de Reguengos de Monsaraz. Nos anos 80, 90 e até no início deste século não se bebia um Garrafeira dos Sócios por dá cá aquela palha. Tinha de haver qualquer coisa para celebrar. Mais, o Garrafeira dos Sócios não era apenas o vinho premium da Carmim. O Garrafeira dos Sócios era uma das grandes referências do Alentejo. E do país. Está hoje esquecido? Não é bem esquecido (sempre são entre 25 e 30 mil garrafas por edição). Está é a competir num mundo a abarrotar de marcas.
Este tinto nasceu a partir de um pingue-pongue entre a Trincadeira e o Aragonês, a que se juntou mais tarde o Cabernet Sauvignon (e que diferença faz um ligeiro sotaque francês nos vinhos) para, recentemente, chegar com maior expressão o Alicante Bouschet e um toque da Touriga Nacional (já cá faltava). Assim, e a caminho dos 20 anos de vida, o Garrafeira dos Sócios 2003 é um complexo de especiarias com eucalipto, caruma e as notas típicas do Cabernet. Na boca, um vinho ainda fresco, vivo e acetinado. Delicioso e perfeito para convencer quem ainda acredita que o Alentejo não está fadado para vinhos de guarda.
Daqui damos um salto para o 2011. Sempre que nos metem à frente um vinho dessa colheita respiramos fundo três ou quatro vezes para manter a calma. Curiosamente, à medida que o tempo passa, tudo leva a crer que andamos, mais uma vez para não variar, a beber demasiado cedo os vinhos de 2011. No caso deste Garrafeira dos Sócios 2011 nota-se o calor do ano, mas há uma linha vegetal, no nariz e na boca, que dá frescura ao conjunto. Isso e as notas de tabaco e de especiarias fazem com este seja um tinto de 2011 fresco, desafiante, que está para durar. Para quem tenha guardado garrafas no seu devido tempo, claro.
Curiosamente, da colheita seguinte (2012), num ano bem mais fresco, esperávamos outra vivacidade. Mais fechado, aqui sentimos fruta madura (ameixa), com bastante concentração, taninos com fartura e notas alicoradas na boca. Um ano depois — Garrafeira dos Sócios 2013 —, vamos quase pelo mesmo caminho, aqui com sensações mais vegetais pelo facto de estarmos perante um lote de Trincadeira com Cabernet Sauvignon. Bom volume de boca.
Finalmente, o Garrafeira dos Sócios 2017 (o que está no mercado, enquanto o 2019 afina mais qualquer coisa), que está cheio de juventude. Muita fruta, floral (cortesia da Touriga Nacional), notas da barrica e o carácter de bosque do Alicante Bouschet por todo o lado.
De tudo isto só há uma conclusão a tirar: é um desperdício abrir uma garrafa do Garrafeira dos Sócios que não tenha, pelo menos, dez anos de vida. Pelo menos, porque, honestamente, o vinho que nos deu maior prazer foi o 2003. Belíssima evolução, finura e, ainda assim, capacidade para fazer boa figura à mesa com peças de caça.
No final, quando tecíamos a ladainha dos lamentos pela impossibilidade de um consumidor poder comprar um Garrafeira dos Sócios 2003, 2011, 2012 ou 2013, João Caldeira, director-geral da Carmim, deu-nos a grande notícia: “A partir da colheita de 2021, deixaremos sempre um stock de 10 mil garrafas para lançamentos tardios”. Quase pedíamos para repetir a frase.
É certo que a Carmim não é uma cooperativa qualquer (factura 21 milhões de euros e tem um peso enorme no sector), mas, quando uma cooperativa toma uma iniciativa destas, é caso para dizermos que estamos perante uma pequena revolução. E que — desejamos nós — se espalhe por outras cooperativas, empresas privadas e regiões.
Guardar vinhos para os vender no tempo certo é, por parte de um produtor, um acto que tem externalidades positivas a diferentes níveis: a) revela maior respeito pelo vinho e pelo consumidor; b) promove a literacia vínica; c) melhora a notoriedade da adega; d) aumenta as receitas; d) e — vá lá — até torna um jornalista de vinhos numa figura relativamente mais credível (tantos a pregar e não havia maneira da coisa acontecer, valha-nos Deus).
Os conservadores dirão sempre que os produtores portugueses não têm condições financeiras para guardar vinhos (em muitos casos é verdade) e que são os consumidores que têm de comprar cedo e guardar o vinho (o que até seria acertado não se desse o caso de vivermos num país em que as casas no Inverno são uma arca frigorífica e no Verão um forno). Mas, como estamos em Portugal, ou muito nos enganamos ou vamos ver outros produtores a fazer o mesmo. E ainda bem. Já vai sendo tempo de acabarmos com os vinicídios. Em nome do vinho e do negócio em si.
Nome Reguengos Reserva dos Sócios 2017
Produtor Carmim
Castas Alicante Bouschet, Trincadeira, Aragonês e Touriga Nacional
Região Alentejo
Grau alcoólico 14,5 por cento
Preço (euros) 25
Pontuação 93
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova Este é um vinho lançado com algum tempo de garrafa, mas que, em nosso entender, ganha uma dimensão superior a partir dos dez anos de garrafa. Por agora está com aquela intensidade de fruta, de flores e de barrica que é típico de um vinho alentejano, sendo que na boca sente-se a presença da casta Alicante Bouschet. É comprar três garrafas. Abre-se uma agora, outra daqui a dois anos e a última em 2027. Não falta assim tanto.