Por que choram os “lobos”?

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O Mundial de râguebi a decorrer em França e os feitos da nossa selecção, voltaram a dar muita visibilidade em Portugal a um desporto que tem algumas tradições no nosso país, mas que não tem, em boa verdade, dimensão nem visibilidade mediática.

São muito os méritos reconhecidos a uma modalidade que tem um código de valores e princípios que são normalmente mais importantes que a competição em si. Um dos lemas dos melhores do mundo resume bem isso. “Better man make better all black” que por si só revela a genuína essência do rugby bem como a mentalidade, o posicionamento e os ideais da selecção da Nova Zelândia. Numa interpretação “literal”, “melhores homens fazem melhores 'all blacks'”. Este código muito próprio (que põe o carácter do homem no topo das virtudes dum desportista) tem dado ao longo dos anos exemplos que surpreendem a restante comunidade desportiva e que têm sido amplificados na sociedade. A conduta desportiva dos jogadores, o respeito aos árbitros, a transparência e partilha das decisões, o respeito ao adversário... Enfim, o ambiente saudável no qual se envolve a modalidade.

Ver a festa que se faz em cada jogo ou como os adeptos japoneses limpam as bancadas ou ainda como os adversários fomentam esta cultura, bebendo uma cerveja juntos ainda no balneário, num ambiente de enorme respeito pelo desporto e pelos seus valores (bem vincada pelas recentes imagens do seleccionador fijiano no balneário português) é típico dum desporto que de tão físico, teria tudo para ser exactamente o contrário. A famosa terceira parte no pós-jogo é um momento de partilha entre todos quantos participam no jogo e que demonstra de forma curiosa o que de facto importa no jogo. Respeito por todos e acima de tudo pela modalidade.

Mas voltando à selecção. A forma sentida como os nossos jogadores cantam o hino ou o empenho e garra que põem no jogo, conseguindo esbater as evidentes diferenças que teoricamente tinham dos seus adversários, são apenas o resultado da forma como sentem aquilo que este desporto e uma representação nacional a este nível, representa para o grupo. Mas porquê? Donde vem esta genuína paixão que se vê nestes “lobos” que se atiram aos pés dos adversários bastante mais fortes sem se lhes ouvir um gemido e que no momento a seguir deixam cair uma lágrima ao cantar o hino nacional? Donde vem esta incrível evolução competitiva sem que em boa verdade muita gente acreditasse que poderíamos ombrear com os melhores do mundo, num grupo de jogadores essencialmente amador e que entusiasmou mesmo aqueles a quem a modalidade diz muito pouco?

Diria que vem do ADN específico deste desporto, mas também, e em relação ao “fenómeno” português, daquilo que o râguebi é em Portugal. Invisível.

Quando amadores pedem licenças sem vencimento dos seus empregos para estarem quatro meses a prepararem-se para uma das maiores competições desportivas mundiais, estão literalmente a pagar para jogar. E fazem-no porque genuinamente se movem por algo mais (pelo dinheiro não será com certeza). Porque fazem parte de alguma coisa em que acreditam, em que se revêem e em que onde se sentem bem como homens. Porque acreditam no sentido de estar ali, daquela representação específica e que não se representam individualmente, mas um conjunto de valores pelos quais se regem e onde a representação nacional é o ex-libris. E a representação num mundial uma oportunidade de uma vida.

Quando um “lobo” chora no hino, emociona-se porque sabe o que esse momento representa, para si, mas também para os que estão ao seu lado, para os que estão nas bancadas e para os que estão atrás da emissão da SportTV a vibrar como se estivessem lá. Representam gerações e gerações de jogadores anónimos, dedicados à causa, e que a pouco e pouco e de tempos a tempos têm conseguido fazer afirmar, ainda que por breves períodos, esta apaixonante modalidade.

Sabem que representam, um desporto que se joga pelo jogo e para ganhar mas também e acima de tudo porque fazem parte de uma empreitada que os construiu como homens, que lhes ofereceu os amigos de uma vida e que os moldou ao que são para sempre. E quando deixam correr uma lágrima ao entoar o hino fazem-no pelo orgulho que sentem, pelo valor que dão ao trabalho, esforço e dedicação a que foram obrigados para poderem pisar nesse dia, aquele relvado.

Talvez sejam estes os “segredos” desta modalidade e eventualmente de outras (porque as haverá com certeza com tantos ou mais méritos – mas falo do que conheço). A verdadeira genuidade dos que jogam. O amor à causa. E um exercício de humildade permanente.

Esta reflexão levou-me a outro tipo de questões. Por que razão não aderem as marcas a desportos de menor visibilidade mas com outro tipo de raízes? Por que razão não arriscam as marcas em investir nestes desportos e apostam num crescimento conjunto, podendo desfrutar e amplificar os valores e causas intrínsecas a cada modalidade? Por que razão as marcas insistem sempre e apenas no mesmo, inovando pouco e desfrutando dos mesmos sound bytes que todos os outros.

No mundo de consumo em que vivemos, em que os consumidores se movem por causas e questionam os propósitos das marcas, em que as marcas buscam ganchos comunicacionais e propósitos para a sua actividade, neste mundo novo das redes sociais, num mundo virtual e artificial em que dificilmente se distingue o virtual do real, o genuíno do encenado, o acessório do essencial, há ainda pequenas ilhas que podem ser grandes oportunidades.

E o râguebi é uma delas. Seja em termos empresariais como em termos sociais. É incrível o trabalho que esta selecção fez e que por um momento pôs o râguebi no centro mediático desportivo.

Mas é incrível também e está bem aos olhos de quem queria ver o trabalho que os clubes, que lutam com as dificuldades inerentes a uma modalidade invisível, fazem a nível dos escalões de formação e do contributo que têm para a construção da sociedade.

Melhores homens fazem melhores jogadores de râguebi. Melhores homens fazem melhores profissionais. Melhores homens fazem um mundo melhor. Esperamos todos que o mundo empresarial, que a sociedade em geral e que o Estado possam dar um dia uma oportunidade ao râguebi para que assim mais possam desfrutar desta construção, e para que num mundial futuro todos consigamos perceber, de que se fazem as lágrimas de um Lobo quando toca o hino nacional.

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