Tiago Macena tem 40 anos, nasceu na Guarda, é casado e tem duas filhas. É enólogo formado no Instituto Superior de Agronomia e, actualmente, responsável por marcas no Dão, no Douro, no Alentejo e na Península de Setúbal. O facto de ter passado no exame prático do segundo ano – o cabo das Tormentas da coisa – não lhe subiu à cabeça. Bem pelo contrário. Continua tranquilamente a fazer vinhos e testar conceitos nas adegas e faz sempre questão de dizer que não é, ainda, Master of Wine. Tecnicamente, na terceira fase do curso, é um aluno de research paper. Só depois de apresentada e aprovada a tese poder ter no cartão-de-visita as duas letras maravilhosa (MW) que abrem portas em qualquer lado. Mas, em rigor, são raríssimos os casos de chumbo nesta fase.
Ter o título de Master of Wine (MW) no cartão-de-visita é um sonho doloroso (nenhum português chegou ainda a este patamar e só existem 414 MW no mundo e formados nos últimos 70 anos). O que o levou a meter-se nesta aventura?
Saber mais. Meti-me nisto por um autodesafio: saber mais e continuar a estudar o mundo do vinho. Quando, em Junho de 2012, o grupo Symington proporcionou uma visita a Portugal do Institute Master of Wine (IMW), achei que era altura de avançar.
Já conhecia o grau de exigência e a loucura que é dominar este universo?
Sim. Quando, como enólogo, trabalhei na Global Wines, no Dão, e tive contacto com dois MW que eram importadores dos nossos vinhos, fiquei fascinado com o conhecimento deles. E comecei a pensar baixinho: será que eu consigo chegar ao nível deles? A vinda do IMW ao Douro foi o catalisador e, em Setembro de 2012, já me iniciava nos course day.
O que são os course day?
São, no primeiro ano, aulas teóricas, com uma semana de provas e teoria intensivas, in loco. O espírito do IMW é uma espécie de auto-aprendizagem com monitorização. Eles encaminham-nos para objectivos que são os exames, do primeiro e do segundo ano.
Imaginamos que, no primeiro ano, o exame seja para perceber se o aluno tem aptidões mínimas para passar e continuar.
Pois, até os resultados do primeiro exame colocam pressão.
Em que sentido?
A partir dos resultados do primeiro exame existem três opções: 1) passas para o segundo ano; 2) és convidado a repetir o primeiro ano; 3) és convidado a sair do programa e só regressar daí a algum tempo.
Passou no exame do primeiro ano?
Sim.
Isso de ser convidado a sair ao fim do primeiro ano deve ser chato.
É, mas o IMW só quer trabalhar com alunos que estejam mesmo empenhados no estudo do vinho e não com turistas do vinho.
Turistas do vinho?
São pessoas — regra geral dos EUA — que, tendo dinheiro à vontade para pagar as inscrições no IMW, viajar e comprar vinhos estão por aqui porque o curso lhes dá acesso aos grandes produtores do mundo. Estes alunos não interessam ao IMW.
Pois, enquanto alunos do IMW, vocês devem ter acesso às grandes casas deste mundo, coisa impossível para um cidadão comum.
Quando escrevia no email: “Olá, sou o Tiago, enólogo português e aluno do IMW e gostaria de vos visitar”, recebiam-me sempre. Por acaso, já que falamos nisso, nunca fiz a experiência de escrever “Olá, sou o Tiago, enólogo português, e gostaria de vos visitar”. Um dia experimento.
Que visita a grandes casas destaca?
Eu visitei todas as grandes casas de Piemonte nessa condição, com a ajuda do jornalista ilatliano Alessandro Trocolli, que também é aluno do IMW. Foi assim que conheci, por exemplo, o Angelo Gaja, que é um ícone do vinho italiano [produtor de Barolo e Barbaresco]. Quando disseram que era ele que me ia receber, pessoalmente, pensei que estavam a gozar comigo, mas aconteceu e lá estivemos a falar de vinhos, do negócio, de tendências e de Itália. Imagine-se um miúdo doido por futebol a conversar com o Ronaldo, foi assim que me senti. E ainda por cima ofereceu-me um livro. Vinho é quem nem uma garrafinha.
No Verão de 2013 faz o exame teórico do primeiro ano, passa, mas depois retira-se. Porquê?
Quando regresso, para o segundo ano, e já no primeiro seminário em 2014, apercebi-me que, por comparação com os restantes alunos, estava fora de pé. Eles tinham muito mais conhecimentos do que eu. E como isto é um desporto caro (inscrições, viagens e compra de vinhos), como não estava para me desgastar em vão e como não tinha por onde roubar mais tempo para estudar, retirei-me.
E quando regressa, em 2018, começa logo a fazer o segundo ano?
Sim, mas só depois de ter repetido um exame do primeiro ano. Disseram-me que, como tinha estado fora durante três anos e meio, teria de repetir o exame, coisa que fiz. E passei.
Quando faz pela primeira vez o exame teórico do segundo ano?
Em Junho de 2019.
E em que consiste tal exame?
São quatro dias em que somos avaliados em matéria de vinhos (provas por perfis individualizados e provas mistas), enologia, viticultura, qualidade, marketing e assuntos contemporâneos. E passei à primeira.
O pior é mesmo o exame prático?
É, embora a parte teórica também seja muito esgotante. Mas sim, é tal o nível de exigência da parte prática que eu só consegui passar à quarta tentativa. Este ano.
Explique-nos onde está a dificuldade desse exame.
Imagine o que é estar perante 36 copos de vinhos de todo o mundo (três provas de 12 vinhos cada) e ter que descrever cada um ao mais ínfimo detalhe. E não é só descrever o vinho (país, região, casta, modo de produção, estilo). É isso e sugerir o target para quem estará destinado esse vinho. E é preciso fazer isso para vinhos de todo o mundo. Para, por exemplo, um Pinot Noir da Alemanha ou para Cabernet Franc da Argentina.
Quanto tempo têm para fazer esse exame?
Duas horas e 15 minutos para cada conjunto de 12 vinhos, provados e avaliados em três manhãs seguidas. Aprendi com o tempo que o ideal é gastar cerca de dois minutos na prova de cada vinho e usar o resto do tempo nas respostas, porque cada pergunta tem valorações diferentes. E é necessário saber gerir o tempo em função disso.
Qual é a pontuação máxima num exame?
Os exames são pontuados entre zero a 300 pontos. Para passar temos de obter 195 pontos, que é 65% de 300, sendo que é necessário ter-se aprovação nas três provas. Um Master of Wine tem que ser especialista consistente em todos os tipos de vinhos, e não só em brancos ou tintos ou espumantes desta ou daquela região.
As perguntas contêm rasteiras?
As perguntas são construídas no sentido de testar, de facto, o conhecimento real que temos dos vinhos de todo o mundo. Do perfil clássico dos vinhos de cada terroir, do que dá uma casta em diferentes terroirs ou das tendências recentes. Cada pergunta é um desafio para perceber se o aluno tem um raciocínio lógico na abordagem ao problema em concreto. Uma resposta pode, inclusive, ter alguns erros (considerados menores, não graves), mas tem sempre de revelar um raciocínio coerente.
No exame teórico, vocês têm de responder a todas as perguntas ou têm hipóteses de escolher de temas?
Depende das áreas, mas, por regra, para cada área (viticultura, enologia, pré-engarrafamento ou temas contemporâneos) temos hipótese de dissertar sobre duas ou três perguntas em seis que nos apresentam. Temos essa liberdade.
Há limite de caracteres ou não?
Há uma sugestão para que cada resposta tenha à volta de 900 caracteres, que é para não nos dispersarmos e sermos concisos. No caso dos temas contemporâneos, eles, como querem saber o que pensamos sobre esses assuntos, permitem-nos ir aos 1500 caracteres, com reflexões mais pessoais, mas não é eu dizer que gosto do Sporting porque o Sporting é o maior. Não, são opiniões que têm de ser bem defendidas.
Regressemos ao exame prático porque, apesar de ser um calcanhar de Aquiles, isso também varia consoante o perfil dos alunos.
Certo, para mim a parte prática foi sempre um problema. Eu passei sempre à primeira nos exames teóricos e chumbei nos práticos. Tenho uma colega espanhola que passou à primeira no exame prático e já chumbou três vezes nos exames teóricos. O Dirceu Vianna Júnior [MW brasileiro] também teve mais problemas nos exames teóricos do que nos práticos. Cada um tem as suas forças e as suas fraquezas. Cada um tem o seu background e as suas origens: uns são enólogos, uns comerciantes, outros críticos e outros jornalistas. São realidades distintas, mas todos estão aqui para serem Master of Wine do mundo e não portuguese ou italian Master of Wine.
O acesso aos vinhos de todo o mundo é um dos factores críticos em todo este processo. O Tiago tinha alguma rede com quem estudava e partilhava vinhos e experiências?
No primeiro ano trabalhei com os portugueses que estavam inscritos. Depois, quando regressei em 2017, como já não havia mais portugueses, passei a trabalhar com um grupo de espanhóis. Sendo Espanha o que é, as empresas de lá apoiam estes projectos, o que facilita imenso a questão dos custos com a compra de vinhos e das viagens. Uma vez, por iniciativa minha, tentei organizar uma viagem a Portugal da equipa de Espanha e não consegui apoio. Ou, por outra, o valor que uma grande empresa do sector propunha era tão ridículo que nem valia a pena continuar a conversa.
Quantos MW espanhóis existem?
O IMW o que conta é o número de MW que existem a trabalhar num determinado país, independentemente de serem ou não desse país. E, neste momento, em Espanha estão sete MW a trabalhar.
Vamos aos números, quanto é que esta aventura já custou?
Não é fácil fazer as contas ao detalhe, tendo em conta que já ando nisto desde 2012, mas, só em inscrições, exames, viagens e estadias em Londres, já ultrapassa os 40 mil euros, valor que não inclui a compra de vinhos e viagens e despesas para outros países. Mas, para se ter uma ideia mais aproximada, a inscrição anual custa cerca de quatro mil euros. E cada exame custa 1500 euros.
Teve apoio da ViniPortugal, certo?
Sim, quando regressei, em 2017, a Viniportugal comprometeu-se a pagar 50% dos custos de inscrição ao longo dos três anos, mas foi uma parceria porque eu devolvi com trabalho.
Quando tiver concluído o curso, como é que vai rentabilizar o famoso MW no cartão-de-visita?
Imagino que, quando isso acontecer, terei outras oportunidades de trabalho para promover Portugal e os vinhos portugueses, mas tal não tirará o foco naquilo que estou a fazer actualmente, que são vinhos no Dão, no Alentejo, no Douro e na Península de Setúbal. E a verdade que só vou ter retorno se souber acrescentar valor. Não será só pelo facto de ser MW que vou ganhar mais, porque se não fizer um bom trabalho, ganho uma vez e, pronto, acabou. Tenho é de ter lucidez para saber acrescentar valor depois de um trajecto que não foi fácil, que teve muitos atalhos sinuosos. Houve uma altura em que estive quase a mandar tudo isso à fava.
Quando?
Foi na segunda tentativa, quando, no exame prático, tive um pior desempenho do que no primeiro. Nessa altura apeteceu-me desistir, mas, como tinha feito dois exames teóricos e sempre com sucesso, pensei cá comigo: ‘Espera lá, se já conseguiste isso é porque tens condições de chegar ao título’.
O que acha que aconteceu desta vez para ter tido sucesso no exame prático?
Neste último exame diverti-me à brava porque aprendi a estar tranquilo e interiorizei que estou aqui porque quero e não porque alguém me obrigou. Acertei nos vinhos com convicção — um deles era o nosso Mateus Rosé — e defendi bem os meus argumentos. Quando eram bons vinhos, eu sublinhei isso; quando eram elementares registei isso mesmo. No fim das contas, mais importante do que estarmos a dizer se este vinho é da região A e aquele é da região B, é sermos capazes de avaliar a qualidade intrínseca de um vinho e o valor pelo qual ele deve ser vendido. E é aqui que demonstramos se sabemos ou não sabemos do assunto. Se não soubermos isso, não estamos a fazer o papel de MW.