Para ser Master of Wine, há que dominar tudo, mesmo tudo, sobre o mundo do vinho
É o título mais prestigioso na indústria. Os candidatos têm de conhecer, identificar e explicar vinhos de todo o mundo. E de estar a par das tendências do sector. Sábado há Fugas Especial Vinhos.
Exige dedicação, resiliência e muitas horas de estudo. É possível fazer o programa do Instituto dos Masters of Wine (MW) – não é um curso e não é reconhecido no meio académico, “apenas” na indústria – em três anos, mas poucos conseguem fazê-lo. Desde o primeiro exame, em 1953, a instituição sediada em Londres, já formou 498 MW. Nenhum é português.
A missão do IMW, lê-se no site, é “promover a excelência, interacção e aprendizagem em todos os sectores da comunidade global do vinho”. E porque foi criado? Durante a Segunda Guerra Mundial, com a França – então o grande produtor de vinhos de qualidade – sob ocupação, os ingleses tiveram de se virar para outros mercados exportadores. Receosas de que pudessem estar a comprar gato por lebre, no pós-guerra, duas organizações, a Wine and Spirit Association e a Vintners’ Company, entenderam que era necessário “melhorar o padrão de educação no comércio britânico de vinhos” e “formalmente certificar os seus membros mais talentosos”. Organizaram o primeiro exame, que aprovou seis MW, entre 21 candidatos.
O Masters of Wine tem três anos lectivos: um primeiro ano “que separa o trigo do joio”; um segundo ano que é a verdadeira prova de fogo dos candidatos e que termina com oito exames, cinco teóricos (viticultura, vinificação e pré-engarrafamento, manuseamento do vinho, negócio e assuntos contemporâneos) e três práticos (12 vinhos brancos, 12 tintos e um “mixed bag” de 12 vinhos), com respostas sobre a forma de “essay”, durante quatro dias; e um terceiro ano, para entregar um “research paper” de 6000 a 10000 palavras.
“Temos de passar os exames práticos todos de uma vez. É difícil. Nos teóricos, a mesma coisa”, recorda Riba d’Ave. O CEO da Direct Wine, no Porto, foi um dos portugueses que entraram para o programa do IMW em 2012, depois de ter participado numa masterclass organizada pela família Symington, que patrocina o instituto.
O programa, desengane-se quem o estiver a pensar, “não é um concurso de provar às cegas e adivinhar o vinho”, atalha o responsável pela distribuidora de vinhos do mundo inteiro, que também é uma das escolas autorizadas em Portugal a ministrar os cursos do Wine & Spirit Education Trust (WSET) – um dos requisitos para quem quer fazer o MW, o outro é ter formação superior na área.
Há dez anos, no evento da Symington, estavam também os enólogos e produtores Tiago Macena (hoje com 40 anos), que permanece inscrito, e Jorge Alves (48 anos), que considera voltar ao programa em 2023. Raul (49) e Jorge venceram uma bolsa para dividir entre os dois. Em dez anos, os percursos dos três cruzaram-se, mas foram sempre diferentes. Na altura, entraram eles no programa e outros seis portugueses, a maioria desistiu no primeiro ano. E, hoje, Tiago é um dos dois candidatos sediados em Portugal de que o IMW tem registo – em Singapura encontrámos pelo menos mais um candidato português, mas já lá vamos.
Raul, que frequentou o programa de 2012 a 2017, conta como logo no início percebeu que a maioria dos “estudantes” do IMW só tinha o programa para fazer, não trabalhava. E como entendeu aí que teria de se “aplicar ao máximo”. Por onde é que se começa? O primeiro ano é preparatório. Mas não há propriamente um manual ou um plano curricular, cada candidato faz o seu, contando com o apoio de um mentor, um MW que dedica parte do seu tempo, de forma voluntária, a esse compromisso tácito de ajudar a formar futuros MW. E há mentores mais disponíveis do que outros, também isso é uma questão de sorte.
É preciso provar muito. Viajar, “não há volta a dar”. E conhecer muito bem a teoria por detrás de cada vinho. E isso implica conhecer regiões, castas, desafios e técnicas de viticultura, anos de colheita mais valiosos. Sim, anos. “Há regiões cujo valor depende em função do ano de colheita: Bordéus, Borgonha, Porto, Champagne, Sauternes, Rioja, Brunellos [di Montalcino] e Piemontes [Barolos]”, conta Tiago Macena, para quem foi preciosa a leitura de revistas especializadas como a Decanter ou a Meininger’s Wine Business International e de “bíblias” como o livro “The Oxford Companion to Wine” da Jancis Robinson.
No segundo ano, há um seminário, em Londres ou normalmente em mais duas localizações, em que os candidatos passam “uma semana juntos a provar em condições de exame”, recorda. Foi aí que o enólogo, natural da Guarda, no Dão, percebeu “não estava nada preparado para fazer exame passados cinco meses”. Escreveu ao IMW a dizer que se retirava por um ano, acabou por se afastar três anos e meio. Voltou a escrever ao instituto em Maio de 2017, explicou que, basicamente, a vida tinha acontecido – tanto a nível profissional, como pessoal – e os Masters entenderam.
Tiago, que tem um projecto novo de vinhos no Dão (é um dos sócios da No Rules Wines) e que é consultor na Adega Marel (Alentejo) e noutros projectos mais pequenos, tem tentado desde então passar para o terceiro ano. É o português que mais longe foi no programa. Foi três vezes a exame, tem mais duas tentativas. No total são cinco hipóteses, mas apenas porque Tiago já passou na teoria. Quem falha teoria e prática só têm três tentativas, depois é “convidado a sair”. “Eles não querem lá turistas do vinho, como dizia há uns anos o Jorge [Alves].”
Para o engenheiro agrónomo de formação, a parte da prova “está a revelar-se mais trabalhosa”. Mas os resultados do último exame, feito em Julho – Tiago chumbou no exame de tintos, mas passou nos outros dois –, “mostram que é possível”. “É possível. Eu não sou superdotado. Mas é suposto seres consistente. E aí está a dificuldade. É a prova de fundo. Tens de provar que conheces, que interpretas e que estás à vontade com os diversos estilos de vinho do mundo. Estive quase, quase a passar.”
Saber primeiro das tendências
Jorge Alves, produtor dos vinhos Quanta Terra (com Celso Pereira) e enólogo da Quinta Nova Nossa Senhora do Carmo, esteve inscrito até 2016. “Foi óptimo”, diz, de imediato, para a seguir falar num “presente semi-envenenado”. A bolsa, de que nem sequer estava a par quando foi à masterclass de 2012, só cobria “um ano de propinas”, que, diz o enólogo, “nem era o mais caro do que se gastava no curso”. Hoje, um candidato que passe em tudo à primeira e não repita fases do programa tem de gastar um total de 13962 libras (16113 euros) só de propinas. Não inclui o seminário obrigatório no primeiro ano, nem viagens ou outras exigências do percurso.
Uma das vantagens do programa do IMW é que é um barómetro de tendências no mundo dos vinhos e da relevância comercial dos vinhos no mercado, algo que Jorge Alves percebeu cedo e que ainda hoje valoriza. “Quem gostar de estar à frente um bocadinho percebe perfeitamente que ali há informação dois ou três anos antes. Quando eu comecei a fazer o curso, a Provença estava a voltar a vir ao de cima com o rosé. Em 2012. E é engraçado que na Quinta Nova começámos a fazer os primeiros ensaios do nosso rosé em 2014, hoje vende imenso”, exemplifica.
E não é só nisso que o MW é actual. Tudo o que gira em torno do vinho ou que afecta a indústria é ali tema bem antes de o ser na generalidade dos terroirs mundiais. As alterações climáticas, por exemplo, já apareciam no exame em 2016, quando Jorge deixou o programa, e mesmo antes. E Raul lembra-se de lhe sair “uma pergunta sobre o peso das garrafas de vidro”. Na resposta, era preciso dizer que havia mercados, como os nórdicos, que valorizavam as garrafas mais leves, enquanto noutros, como o norte-americano, “uma garrafa de 450 gramas [o valor de uma garrafa normal são 650 gramas] não vende, pura e simplesmente”. É preciso dar globalidade nas respostas.
Provar, provar, provar
E como é que se faz para provar vinhos de todo o mundo estando em Portugal? Aproveitam-se todas as oportunidades e todas as viagens. O IMW organiza algumas e depois há regiões que se organizam para receberem candidatos, o Douro é uma delas. Trabalhar no meio também ajuda a abrir algumas portas – mais ou menos, dependendo das empresas para que trabalham os candidatos e dos cargos que ocupam.
Do outro lado do mundo, encontrámos português que se estreia este ano no programa do IMW. Jorge Nunes (40 anos), enólogo de formação e responsável pela área comercial da Symington para a Ásia Oriental. Curiosamente, diz-nos que não sabia que tinha sido a masterclass da sua empresa a mudar as vidas de Raul, Jorge Alves e Tiago. Desde 2008 que viaja, em trabalho, para a Ásia. Viveu dez anos em Hong Kong, precisamente desde 2012, e está há meio ano em Singapura.
Singapura não é Londres, onde os candidatos “têm acesso a tudo, estão expostos ao global trade e podem ir a várias provas gratuitas”, mas está a um pulo de Hong Kong, a principal plataforma para provas internacionais na Ásia. “Há lá mais uns três candidatos. E há três MW já, um local e dois ingleses. Conheço-os e, naquilo que podem, ajudam-me. Acho que faz parte do código de conduta do MW.”
Estar no Dão não impede Tiago Macena de provar alguns dos mesmos vinhos. “Uma coisa que a pandemia nos ensinou é que não é preciso ir a todo o lado para provar os que vinhos que lá se fazem”, partilha o enólogo, que começou a comprar vinhos com outros candidatos, espanhóis, para provarem em casa. “Reengarrafamos esses vinhos em garrafas de 100 mililitros, em ambiente inertizado. Temos um MW espanhol que nos compra os vinhos e elabora uma lista, podemos provar com a lista aberta ou até utilizando filtros, por exemplo Bordéus.”
“Já nós mandávamos vir vinhos de Inglaterra. E chegámos a convidar dois ou três MW que vieram a Portugal dar-nos aulas durante o fim-de-semana. Eles vinham pela viagem, dormida e comida. Traziam duas caixas de vinho, depois dividíamos as contas”, recorda Jorge Alves, que de vez em quando também ia a Londres só para provar vinhos. “Aterrava de manhã, ia para a The Sampler, carregava um cartão com libras e tinha para aí 400 vinhos à prova em máquinas de prova.”
Essa pedra no sapato chamada inglês
Os candidatos as Masters of Wine têm de estudar tudo aquilo de que já se escreveu acima e mais uma coisa: têm de falar e escrever muito bem inglês, dominar os termos técnicos e ter praticamente a mesma desenvoltura que teriam a escrever na língua nativa, neste caso o português.
Nos exames teóricos, já é possível responder noutras línguas. Da última vez que foi a exame, Jorge Alves escolheu escrever em português. Mas na parte prática não há essa possibilidade. E, em 2012, Raul Riba D’Ave “já tinha muitos vinhos estrangeiros no portefólio” da Direct Wine e uma “base de dados” de prova impressionante, mas o inglês revelou-se uma pedra no sapato.
“Nunca acabei um exame prático. E falo muito bem inglês. Mas responder a uma pergunta com pressão de tempo e tendo de articular a resposta é muito difícil.” Não ajuda, dizem todos, ter de responder sobre a forma da tal “minidissertação”. E todos eles têm mundo, e mundo do vinho, diga-se. Mas no MW isso não é tudo.
A nota de passagem são 65 por cento e não vale a pena escrever muito. Na verdade, convém ser objectivo. Responder à pergunta colocada. E argumentar dando os tais exemplos globais.
Raul desistiu ao quinto ano, nunca diz nunca, mas para já não está nos seus planos regressar. Tem ajudado Tiago, que voltará a ter exame daqui a seis meses, entre outras coisas, preparando-lhe provas de vinhos especiais a que tem acesso privilegiado.
Quer Tiago, quer Jorge Nunes estudam duas horas por dia. Ambos fazem planos de ir, em alguns casos regressar, às regiões vitivinícolas clássicas. A sete meses do seu primeiro exame, o português de Singapura sente “um nervoso miudinho” e diz estar curioso para saber o que está a acontecer naquelas regiões, “até do ponto de vista climático”. “Sei que é um tópico sobre o qual gostam de perguntar no MW. Quero fazer essas perguntas aos meus colegas, na fonte.”
Se “muitas das coisas que o programa dá não são tangíveis”, como diz Raul, em última análise, importará sempre mais o caminho que para lá chegar.