O projecto que reúne o enólogo Tiago Macena, natural da Guarda e que com experiência em quatro regiões (Dão, Douro, Alentejo e Bairrada), o wine advisor Cláudio Martins e o empresário António Martins, que detém com o irmão a Quinta de Jugais, empresa líder na distribuição de cabazes de Natal em Portugal, quer fazer vinhos sem regras, diferenciadores e que espelhem diferentes terroirs, para já, do Dão.
Juntaram-se já em 2020 e o primeiro vinho da No Rules Wines, um branco de lote, deverá ser engarrafado “no final de Março, início de Abril”, conta Tiago Macena. “Queremos fazer um branco, para lançar em Março, sem adereços, fresco, sem madeira, nada”, detalha o enólogo. No lote, sobressai o Bical, com Malvasia Fina e Encruzado.
A vindima acabou esta terça-feira e a empresa, com adega no centro de Nelas, processou uvas de três parcelas de vinha própria e arrendada, em diferentes localizações, solos graníticos, e que totalizam seis hectares — Girabolhos, Seia (2,5 hectares; 0,3 de vinha velha; porventura “o sítio mais quente da sub-região da Serra da Estrela”, diz Macena), Póvoa das Quartas, Oliveira do Hospital (2,5 hectares; 0,1 de vinha em pé-franco) e Vila Nova de Tazem, Gouveia (1 hectare) —, e uvas que os sócios decidiram comprar durante um almoço já na segunda metade do Verão.
O novo player numa região onde todos os anos surgem novos produtores aponta para uma produção de 30 mil garrafas no ano de estreia no mercado e já registou a marca “Código”, que pretende usar como nome chapéu para as referências que vier a lançar. “O objectivo da No Rules Wines é fazer muito bons vinhos, para já na região do Dão, e se possível na sub-região da Serra da Estrela, o António Martins e eu somos de lá. E ir crescendo devagarinho”, refere, ao Terroir, Cláudio Martins. O consultor de vinhos e embaixador do Liber Pater, vinho francês da região de Bordéus produzido em vinhas em pé-franco e que custa 30 mil euros a garrafa garante que essas “coisas muito boas” terão preços “sempre muito equilibrados”. Exceptuando, vai dizendo, o vinho especial que venha a sair da vinha em pé-franco. Mas já lá vamos.
Depois do branco, conta Tiago Macena, o “Jaen perdido” da parcela de Vila Nova de Tazem (é como os sócios se referem a essas uvas numa alusão às características das vinhas no Dão: “não estão fáceis de ver, tens de as procurar no meio dos caminhos; só chegamos àquela vinha se formos nativos ou alguém nos levar lá") dará origem a um primeiro tinto, para “sair em Maio/Junho, mais fresco, mais fácil, feito no inox, com temperatura de fermentação mais baixa e menos contacto pelicular”.
De Girabolhos chegaram à adega as uvas que darão outro tinto, de categoria superior ou um monovarietal, “para lançar mais tarde”. “Já vinificámos em lagar, com outras técnicas que potenciam o envelhecimento desse vinho, parcialmente com cacho inteiro. Quando digo que o construí, foi aqui na adega. E essa construção faz com que tenha mais estrutura, mais taninos, mais cor”, explica o enólogo. Sofreu “uma extracção mais intensa mas ainda assim suave”, conseguida mergulhando a manta com um macaco de madeira.
A No Rules quer lançar ainda outro branco, um monovarietal de Encruzado, 2800 litros, que terá estágio em inox e barricas usadas. E na adega há ainda cinco aparentemente deslocadas ânforas de barro. Duas dessas talhas têm vinho branco — do tal negócio de última hora, “uma oportunidade": uvas de duas vinhas mais antigas, de uvas misturadas, em Lagarinhos e no vale de rio Torto —, “com película”. “Aqui estou a construir um vinho que só me é permitido dado o nome da nossa empresa”, confessa Tiago Macena. “Não é usual na região nem tão pouco vai ser DOC. OK, queremos fazer o que nos apetece, mas temos a noção que não é Dão.”
As outras três talhas têm Touriga Nacional e Tinta Roriz, de três talhões da vinha de Girabolhos, de onde se avistam Vila Nova de Tazem e a serra da Estrela e se ouve um ribeiro que vai dar ao Mondego.
Castas esquisitas, plantadas em pé-franco
Na Póvoa das Quartas (que deve o nome à aldeia da freguesia de Lagos da Beira), há uma vinha em pé-franco, um “risco”, é certo, mas igualmente uma pista sobre os vinhos que Tiago, Cláudio e António pretendem “construir”, como diz o enólogo. Plantado em 2020 e 2021, este é também um talhão especial porque ali, a 473 metros de altitude, estão 14 castas tradicionais do Dão, muitas delas variedades raras, de que poucos terão ouvido falar. “Uma linha de cada, 14 castas ao todo: nos tintos, Alvarelhão, Baga, Bastardo, Coração-de-Galo, Pilongo, Tinta Amarela (Trincadeira), Tinta Carvalha, Tinta Francisca, Touriga Nacional e, nos brancos, Alvadurão, Bical, Dona Branca, Douradinha e Malvasia Fina”.
Uma vinha que “está dependente dela própria” e que em 2022 só deu “um balde de uvas”, “bagos pequeninos”. Mas “não há pressa, quando der uva, deu”, diz Macena.
E esse risco chamado filoxera? “É, de facto, um risco. Mas escolhemos, na confluência de duas encostas, este sítio como plano b. Espero que não seja preciso, mas o que podemos fazer é alagar [o terreno]”. E, literalmente, afogar o destrutivo insecto Phylloxera vastatrix. A praga atacou videiras no mundo inteiro no século XIX e foi um verdadeiro flagelo para as vinhas na Europa. A defesa encontrada, anos mais tarde, foi o bacelo ou porta-enxerto. Até ao ataque do Phylloxera vastatrix, que se alimenta das raízes das videiras, estas eram plantadas directamente no solo, ou seja, em pé-franco.
Tiago quer “vinificar tudo junto, em field blend”. Quando der. Não tem planos, para já, a não ser esses. E os vinhos são mais distintos por isso? “Só conheço os do Luís Pato. Que é o produtor que tem essa vinha mais estabelecida. O sabor é mais intenso, diria.” Cláudio Martins vai mais longe: Quiçá não haverá daqui a dois ou três anos um vinho de excelência na No Rules Wines, do Dão. Poderá sair daqui uma brincadeira interessante. [Em termos de preços] poderá ser uma coisa mais elevada para a própria região. Gostava muito de associar aquela vinha à associação de vinhas de pé-franco criada pelo Loïc Pasquet. Já está lá a Filipa Pato em Portugal”. Cláudio tenciona mesmo trazer ao Dão o produtor francês do vinho tranquilo mais caro do mundo, para lhe dar a conhecer a vinha da Póvoa das Quartas.
Nessa parcela de Oliveira do Hospital, concelho onde tem sede a gigante Quinta de Jugais, os três sócios também plantaram, com porta-enxerto, “2200 pés de Baga” e “700 pés de Uva-Cão”.
No futuro, crescer pode passar por comprar mais uvas a terceiros e/ou por comprar ou arrendar outras vinhas, contando que surjam boas “oportunidades”.
Na Martins Wine Advisor também há distribuição, de forma que a sociedade criada para fazer “vinhos sem regras” tem um “ecossistema”, palavras de Cláudio Martins, privilegiado aonde vingar. Os vinhos serão distribuídos por aí, para o “canal Horeca e clientes privados”, beneficiando da consultoria que Rodolfo Tristão já faz para a empresa de Cláudio Martins.
Mais discreto, António Martins fala numa “empresa que é quase um grupo de amigos” e promete “aproveitar os canais de distribuição” da Quinta de Jugais para dar um empurrãozinho ao projecto: “os cabazes, as empresas de distribuição em Angola e Moçambique, clientes internacionais que temos noutras áreas.”