O Coração Ainda Bate. As zonas azuis

Inês Meneses escreve sobre o propósito da vida.

O Outono chegou, e, sem querer, fiz um balanço. Era previsível que acontecesse quando, amanhã, passará um ano sobre a morte da minha mãe. Vi-me perante as estações do ano como se recuasse e renascesse, hibernasse e voltasse em flor. O Inverno apagou-me, e, na Primavera, aquando de mais uma notícia difícil, reagi, por fim. Ganhei um propósito de vida: ser feliz no imediato. No Verão expandi-me. Gostei do sol, e o calor não me inquietou ao fim de muitos anos. No campo, ao fim da tarde, enquanto os pássaros urdiam a banda sonora mais perfeita, eu agradecia o facto de estar ali, no lugar onde cresci, porque na infância estava longe de saber o valor das coisas simples.

Agora é de novo Outono. Ainda está calor, mas é o mundo lá fora em convulsão que me inquieta: as injustiças sociais, a cratera que se abriu para os que gritam por uma vida com dignidade. Já não podemos ser brandos ou mornos num mundo a ferver: é preciso agir.

Há dias, vi um documentário em quatro episódios chamado “Viver até aos 100: Os Segredos das Zonas Azuis”. Impressionou-me tudo o que aprendi, independentemente de as fórmulas ali reveladas surtirem efeito na minha vida. Mas há muito a retirar do exemplo de cada uma daquelas pessoas que já viram e viveram para contar: amar e ser amado (o amor conjuga-se entre pessoas, não necessariamente entre relações conjugais), saber cuidar dos mais velhos, aprender com eles, comer o que a terra nos dá, cansar o corpo, ter fé, talvez – acrescento eu – possa bastar a fé na bondade, mas, sobretudo, um propósito de vida: acordar todos os dias com um objectivo. Os japoneses chamam “ikigai” a essa razão de viver. Segundo eles, cada um tem a sua, mas é preciso pensar profundamente nesse nosso propósito. Desde esse dia que penso no meu ikigai: o que me move? O que me faz acordar todos os dias? Agora lembrei-me de quando, no Verão, falei com o Ivo Canelas a propósito da peça “Todas as Coisas Maravilhosas” e ele dissertou sobre esse instante que é o acordar. Ganhar mais um dia e outro. Esfregar os olhos e ter a possibilidade de viver outra vez, mais uma vez. O acordar não é garantido. A finitude que o diga.

Eis-me então olhos nos olhos com a minha razão de viver. Um duelo, ou talvez mais do que um duelo, uma partida longa de xadrez entre Karpov e Kasparov: movimentações lentas e pensadas, deslizes que me arrumam do tabuleiro. E talvez não seja mau abandonar o jogo, porque pensar demasiado pode levar-nos a um labirinto de perguntas sem resposta. Evoco a minha mãe de novo quando a cada telefonema dizíamos: “Mente vazia, oficina do diabo.” Temos de nos ocupar, mas sem ser com os olhos enfiados no ecrã. Temos de nos cansar, voltar ao campo e mexer na terra. Este fim de ciclo que presenciamos está a empurrar-nos para as origens. Tudo se parece precipitar para o início.

Volto às zonas azuis por onde se espalha o maior número de centenários do mundo. O documentário começa com uma impressionante mulher japonesa de 101 anos: vive em Okinawa. Como é que se chega a este número com a agilidade dela, com o riso que lhe atravessa a cara? “Divirta-se sempre. Não se irrite. Faça toda a gente feliz.” E acrescentava: “Eu não me zango.” 101 anos, e a dizer-nos coisas que primeiro desvalorizamos, até deixar que estas palavras nos amolguem, uma mossa que é boa porque nos retirou da forma inicial.

Há mais de meio mundo zangado com outra metade. Em muitos casos, com razão na busca por coisas tão básicas, noutros por pura ganância, o rancor erguido, a guerra feita para ter o nome assegurado na História. Gente que está longe do seu ikigai, da sua harmonia.

Não, não me vou tornar zen. Só mais atenta. O poder da escuta é transformador.

O coração ainda bate.

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