Uma pergunta recorrente que os críticos de vinhos ouvem — e com insistência nos últimos dois anos — é esta: ‘mas o vinho vale mesmo esse dinheiro todo?’ A resposta é quase sempre a mesma: ‘se o vinho é todo comprado, o preço está correcto; caso contrário, não, não vale o preço’. Claro que, mesmo assim, muita gente que vive num país vitícola com salários miseráveis e em que 80% dos vinhos vendidos está abaixo 3 euros não consegue descobrir um pingo de racionalidade no pagamento de 50, 100 ou 600 euros por uma garrafa de vinho tinto (o Porto ou o Madeira têm outra tolerância).
Claro que os consumidores que classificam os preços acima de 50 euros com adjectivos delegantes são, muitas vezes, os mesmos que não se importam de pagar valores consideráveis por relógios, automóveis, hotéis, camisas de marca ou mariscadas. Cada um tem boas justificações para os seus prazeres — e ainda bem que é assim —, mas, quando o assunto é uma garrafa de vinho, aqui já se condena o facto da mesma cair na categoria de luxo, coisa que, já agora, acontece em qualquer parte do mundo.
À conversa com o Terroir, o publicitário Carlos Coelho refere que “o preço em si é uma uva muito valiosa, uma uva que acrescenta sabor e valor”. O líder da Ivity Brand Corp encara estas matérias a partir do estudo da natureza humana e não tanto a partir de uma escala de valores para salientar que, “num mercado em que a larga maioria dos consumidores não é especialista no assunto, um vinho que tenha um preço elevado é percepcionado automaticamente como um melhor vinho". "Gostemos ou não, o preço faz parte do blend de um vinho."
Perante a escalada de preços altos nos últimos dois anos, Carlos Coelho afirma que, num "mercado nacional com milhares de marcas, mas em que só duas conseguem, ao longo de décadas, posicionar-se num patamar ultra premium, é mais do que natural que outros produtores queiram chegar perto desse pódio”. Contudo, faz questão de salientar que a valorização do preço junto do consumidor — a valorização da qualidade percepcionada — é algo que tem de ser feito de forma credível e séria". "Caso contrário, não funciona."
Por outro lado, o especialista em criatividade e comunicação refere que “se continuarmos — em particular nos mercados externos — a insistir na relação qualidade preço dos nossos vinhos, não vamos a lado algum". "Temos de ter estratégias para que os consumidores olhem para os nossos vinhos como olham para os vinhos do Velho e do Novo Mundo. Só assim poderemos aumentar preços para distribuir riqueza em toda a fileira."
Apesar de perceber a onda de contestação pública aos gastos em almoços de Isaltino Morais, presidente da Câmara Municipal de Oeiras, e de ser adepto do bom senso, Carlos Coelho observa que “a sociedade portuguesa — em parte por causa dos salários baixos e em parte por questões culturais e históricas — continua a ter uma certa vergonha e a fazer um julgamento negativo no que se refere ao consumo de produtos de excelência que, pela natureza das coisas, são caros". "Os portugueses não aceitam que um político consuma produtos destes, mesmo que este, por exemplo, argumente que está a promover o aumento de vendas dos mesmos.”
O vinho “banal” que é objecto de desejo
De maneira que estava o país entretido com os mais recentes episódios da novela Costa / Marcelo e com uns intelectuais ofendidos com uma escultura no Porto com uma década de vida quando Isaltino se divertiu perante o povo a justificar os seus almoços na restauração de Oeiras, acelerando a fundo quando — entre disparates variados — garantiu que o arroz de lavagante é um prato de trazer por casa, que o sushi é barato, que o saqué é afrodisíaco e que o Pêra Manca branco é um vinho “banal”.
De caminho, assumiu o papel de crítico gastronómico e, pelo que se ouve dizer por aí, com muito sucesso, visto que as reservas na restauração oeirense terão disparado (dizem). Se a moda pega, os poucos críticos profissionais que ainda existem vão todos para o desemprego.
Dando de barato que Isaltino toureou com malícia os deputados municipais e o país (uma garrafa de Pêra Manca branco custa 60 euros na garrafeira, pelo que na restauração os valores andarão pelos 80 euros ou mais), a questão que muita gente coloca é – para voltarmos ao início da conversa – se se justifica ou não pagar tanto dinheiro pelo vinho?
Pêra Manca é, hoje, mais do que um vinho, um objecto de desejo, de culto e de exibição social para determinados target, com destaque para o mercado brasileiro. Como se sabe, o vinho mais viajado nas malas entre Portugal e o Brasil é o Pêra Manca tinto, que depois é revendido.
O conceito Pêra Manca não nasceu por descuido. Foi planeado com detalhe por Francisco Colaço do Rosário, que queria provar ao mundo que no Alentejo — onde já se vindimava antes dos romanos — era possível fazer-se um tinto cosmopolita e consistente (coisa que não existia então), que tanto causasse espanto na região como em Lisboa ou fora do país. De facto, a partir dos anos 1990 chegou ao resultado pretendido.
Conseguiu, no caso do tinto, criar um vinho com carácter alentejano a partir de Aragonês e Trincadeira (frutos vermelhos e taninos muito suaves e sedosos) e com detalhes narrativos não despiciendos: o ambiente do Convento da Cartuxa com os monges, tonéis de grande volume, tempo de estágio prolongado e canto gregoriano na adega para amaciar os taninos). Em termos práticos, estava encontrado o Barca Velha do Alentejo que, com a ajuda de alguma restauração de requinte de Évora, se transformou rapidamente numa estrela.
No caso do Pêra Manca branco, cuja fama nunca se comparou com a do tinto porque, entre outras razões, naquela altura um vinho branco nem era bem um vinho, vale a pena recordar que a casta que lhe dá identidade, Antão Vaz (sempre com apoio da frescura do Arinto), esteve quase para ser relegada para quinto plano quando Colaço do Rosário começou, nos anos 1970 e 1980, a seleccionar as variedades mais aptas para vinhos alentejanos. O enólogo só se apercebeu do potencial da casta a partir de estudos e testes realizados em Bordéus, em particular com a fermentação dos mostos em barrica.
Agora, do ponto de vista sensorial, o Pêra Manca branco será um vinho extraordinário e capaz de nos encantar às cegas? Não, não é. Nem o Pêra Manca nem outros vinhos famosos do país. De resto, se desafiarmos um consumidor esclarecido no mundo do vinho a gastar 60 euros num grande branco alentejano é improvável que escolha o Pêra Manca (o mais plausível será até comprar dois vinhos diferentes e desafiantes com os 60 euros). E isto porque o Pêra Manca branco é, hoje, um vinho padrão. Bem feito, é certo, mas padrão. Ou seja, é um branco com aromas de frutos tropicais, notas de barrica e batônnage e uma boca com volume, mas algo doce pelo facto de nos chegar com 13,5% de álcool, coisa que pode enjoar a partir do segundo copo.
Isso, todavia, em nada interfere com o desejo dos consumidores que valorizam mais a notoriedade da marca do que o vinho em si (aquele nicho que bebe rótulos) e que fazem profissões de fé em determinadas marcas.
Mas o que é de facto intrigante é o prolongamento da notoriedade da marca no tempo. Nos últimos anos nasceram dezenas de marcas de altíssima qualidade e que, em prova cega, ultrapassariam o Pêra Manca, mas isso não belisca um vinho que é alocado com parcimónia pelas garrafeiras e restaurantes, tal é a procura que lhe é dirigida. As coisas são assim porque a fama inicial, nos anos 1990, e suportada por um perfil surpreendente, deu origem a uma procura enorme pela marca.
Com a procura enorme, o preço disparou. E, com preços altos, o Pêra Manca passou a ser o tal objecto de desejo, acessível só a uma elite endinheirada. Quantas vezes não ouvimos gente a fazer apostas com amigos e cujo troféu é um Pêra Manca (ou um Barca Velha)? Alguém aposta uma garrafa de azeite, um bacalhau de cura amarela, um cabaz de sardinhas, um presunto, uma caixa de ostras ou um quilo de gamba rosa? É o apostavas. E quantas garrafas de vinho há em Portugal que chegam aos consumidores com um atestado de segurança e prevenção de fraude?
Por essas e por outras temos de tirar o chapéu a Pedro Baptista, actual criador do vinho e administrador da Fundação Eugénio de Almeida, pelo facto de manter a marca e o conceito Pêra Manca como um objecto de desejo, ainda por cima, com volume de produção, no caso do branco, na ordem das 90 mil garrafas. É obra.
Um vinho nunca é só um conjunto bem embrulhado de detalhes químicos (açúcares, aromas, taninos, acidez ou pH). É isto e, também, uma história que, desejavelmente, não seja um conto fantasiado num departamento de marketing ou comunicação, como agora é hábito.
Havendo hipótese e capacidade de compra, devemos beber Pêra Manca branco (produzido ininterruptamente desde 1990) por causa da sua história e do seu papel na modernização dos vinhos alentejanos e porque, por mais marcas que surjam no mercado — e só Deus sabe quantas nascem por dia — o vinho é, ao lado do Barca Velha, um ícone sem rival. Quantos produtos alimentares tem Portugal neste campeonato? Pois... Um Pêra Manca branco é um vinho caro para muita gente e não é a última bolacha do pacote, mas está muito longe de ser “banal”.