O fenómeno Pêra-Manca
A Fundação Eugénio de Almeida, instituição com fins filantrópicos e um dos maiores proprietários do Alentejo, foi criada em 1963 mas só lançou o seu vinho-emblema, o Pêra-Manca, em 1990. Sim, um dos vinhos mais famosos do país, verdadeira lenda no Brasil, tem apenas 27 anos. Quem diria.
Por que razão os brasileiros gostam tanto de Pêra-Manca, o icónico vinho alentejano da Fundação Eugénio de Almeida? Em Portugal e em Angola, o vinho também tem muitos apreciadores, mas a devoção que lhe dedicam no Brasil não tem paralelo.
A fama do Pêra-Manca no Brasil, só comparável à do Barca Velha e do Periquita, é um caso de estudo. Desde logo que porque se trata de um vinho com uma história muito curta. Nem pensámos nisso quando ouvimos o nome Pêra-Manca, mas a primeira colheita deste vinho (falamos do tinto, que é o mais cobiçado) é apenas de 1990. Leu bem: 1990. Nem sequer é um clássico, como o Mouchão, por exemplo. Mas até por isso é ainda mais extraordinário o estatuto que o Pêra-Manca alcançou em tão pouco tempo. O vinho tem só 27 anos e apenas 14 colheitas no seu historial (1990, 1991, 1994, 1995, 1997, 1998, 2001, 2003, 2005, 2007, 2008, 2010, 2011 e 2013).
A qualidade do vinho não explica tudo. Em provas cegas, poderia ganhar e perder no confronto com outros vinhos do Alentejo. Mas é inegável que o Pêra-Manca é hoje visto como o Barca Velha do Alentejo. Em condições normais, esse estatuto seria do Mouchão, mas os responsáveis da Fundação Eugénio de Almeida trabalharam melhor e foram mais ambiciosos e ousados no posicionamento da marca, situando-a num patamar de preço mais elevado. Em vinhos tranquilos, só o Barca Velha é mais caro. Em Portugal, uma garrafa de Pêra-Manca custa 200 euros (é esse o preço recomendado para a colheita que acaba de sair, de 2013). No Brasil, chega a custar mais de mil euros.
A produção normal de Pêra-Manca não ultrapassa as 30 mil garrafas. A colheita de 2013 foi a mais exígua de todas: apenas 19 mil garrafas. Cerca de um terço vai directamente para o Brasil. O grosso é comercializado em Portugal, mas uma boa parte do vinho alocado ao mercado interno é comprado por angolanos e brasileiros. Sobretudo, por estes. Há brasileiros que pagam viagens a Portugal só com a revenda no Brasil de algumas garrafas de Pêra-Manca e Barca Velha.
O mercado paralelo que se tem vindo a desenvolver em torno da marca, com algumas falsificações pelo meio (no ano passado, a ASAE apreendeu 1700 garrafas de Pêra-Manca 2010 falsificadas), levou mesmo a Fundação Eugénio de Almeida a criar, em 2015, um sistema de segurança para assegurar a autenticidade do vinho. O sistema consiste na incorporação na cápsula da garrafa de um código único associado à utilização de uma imagem holográfica, código esse que, ao ser validado no sítio da internet da marca, garante a aquisição de uma garrafa original.
O vinho da descoberta do Brasil
Uma história bem contada é meio caminho andado para vender um vinho e o Pêra-Manca tem uma boa história por trás. Os grandes vinhos do mundo estão quase todos ligados a monges. No caso do Pêra-Manca, a lenda associa este nome aos frades do Convento de Espinheiro, em Évora (hoje convertido em hotel), os quais foram donos, nos séculos XV e XVI, de vinhedos situados num lugar com muitas pedras de granito soltas que “mancavam” (oscilavam). E das “pedras mancas” surgiu o nome Pêra-Manca. Os seus vinhos seriam muito famosos na época, ao ponto de Pedro Álvares Cabral ter levado algumas pipas (a lenda fala em tonéis!) na expedição do descobrimento do Brasil. Seria esse o vinho, partilhado com os índios, de que fala Pero Vaz de Caminha numa das suas cartas: “Alguns deles traziam arcos e setas; e deram tudo em troca de carapuças e por qualquer coisa que lhes davam. Comiam connosco do que lhes dávamos, e alguns deles bebiam vinho".
Mais tarde, no século XIX – e aqui não estamos no domínio das possibilidades históricas, é factual-, a Casa Agrícola José Soares produziu durante muitos anos um vinho com o nome Pêra-Manca. Em 1920, com a morte do proprietário e após as devastações causadas pela filoxera, a casa fechou e o vinho não voltou a ser produzido. Em 1987, o herdeiro da Casa Soares, José António de Oliveira Soares, ofereceu gratuitamente a marca “Pêra-Manca” à Fundação Eugénio de Almeida, impondo apenas uma condição: o Pêra-Manca teria que ser engarrafado com o melhor vinho da fundação. E a promessa foi (e tem sido) cumprida.
O vinho é feito, desde a primeira colheita, com uvas de Aragonez e de Trincadeira. A primeira aporta estrutura e a segunda acidez. A participação de cada uma no lote final pode variar ligeiramente de ano para ano, mas é quase sempre similar. As uvas são provenientes de três talhões com cerca de 35 anos da Herdade dos Pinheiros, uma das quatro herdades da fundação (ao todo, a Fundação Eugénio de Almeida possui cerca de 450 hectares de vinhas próprias e engarrafa mais de 4 milhões de garrafas por ano). As duas castas são vindimadas e fermentadas em separado e os vinhos seguem também estágios autónomos até ao momento do lote final, decidido por Pedro Batista, o enólogo da Cartuxa. Também membro da comissão executiva da fundação, Pedro Batista está ligado ao Pêra-Manca desde 2004 e ainda chegou a trabalhar com Colaço do Rosário, “o pai dos vinhos alentejanos”, que foi quem decidiu as primeiras colheitas.
Imponente e com seguidores fiéis
Os solos que dão origem ao vinho são de granito e desde 2015 que as vinhas passaram a ser tratadas de forma biodinâmica (o último Pêra-Manca, de 2013, ainda não reflecte essa mudança). A vindima é manual e as uvas são primeiro arrefecidas, durante 24 horas, até atingirem os 12 graus centígrados, antes de serem sujeitas a uma triagem fina num tapete de escolha computorizado e desengaçadas. O mosto fermenta depois em balseiros de carvalho francês com controlo de temperatura. Terminada a fermentação, o vinho é transferido para a cave da Adega Cartuxa – Quinta Valbom, hoje sede do Enoturismo da fundação –, onde estagia entre 18 e 24 meses em tonéis de 3 mil litros, também de carvalho francês.
Quando o vinho segue para os tonéis, já está mais ou menos decidido que vai ser Pêra-Manca. Na verdade, essa intuição, segundo Pedro Batista, “começa logo na prova das uvas”. As melhores seguem o seu caminho próprio, que só termina no dia em que o enólogo decide o lote final e o vinho é engarrafado e colocado a repousar durante mais dois anos nas caves do Convento da Cartuxa. O lançamento ocorre normalmente ao fim de quatro anos.
Quando o Pêra-Manca chega ao mercado ainda não é um vinho acabado. Os grandes vinhos nunca nascem prontos, vão-se transformando ao longo do tempo. O 2013, apresentado no mês passado, está agora na sua fase mais exuberante, sobretudo no aroma, muito complexo e impressivo. Junta fruta madura, sensações terrosas e químicas, especiarias, notas de madeiras exóticas, couro, tabaco… Um sem fim de sugestões que mostram como um grande vinho é muito mais do que a simples expressão das uvas.
Neste caso, tem por trás um grande trabalho de vinha e de adega e também a alquimia da fermentação e estágio em balseiros e tonéis de carvalho francês. Na boca, é encorpado, amplo e sólido, com taninos poderosos e aveludados mas um nadinha secos e uma acidez equilibrada, sem ser arrebatadora. É um registo muito “Pêra-Manca”, de grande impacto sensorial e muito atractivo para quem gosta de vinhos maduros e estruturados. Não está muito alinhado com as tendências actuais de consumo, que privilegiam vinhos com menos madeira e menos álcool, mas as marcas com estatuto não podem andar ao sabor das modas, e o Pêra-Manca tem um estilo próprio e seguidores fiéis. Não foi só pela história que se tornou tão famoso em tão pouco tempo.