Douro implementa piloto de reutilização de água na rega de vinhas
Experiência em vinha da Poças, no Douro Superior, canaliza água de uma ETAR local para a utilizar na vinha. E estuda os efeitos da sua utilização, quer na saúde do solo, quer na qualidade da uva.
É para já um projecto-piloto, mas a correr bem poderá vir a ser uma solução para mitigar os efeitos da falta de água na agricultura, em concreto na viticultura, e tornar mais eficiente o uso de um bem tão escasso e precioso. A Poças está a usar águas residuais tratadas da Estação de Tratamento de Águas Residuais (ETAR) vizinha de Sebadelhe na sua Quinta de Vale de Cavalos (numa parcela a 450 metros de altitude), em Numão, Vila Nova de Foz Côa. A experiência passa também por aproveitar os nutrientes e fertilizantes presentes nessas águas tratadas.
Para já, a água para reutilização (ApR) chega à quinta, percorrendo uma distância de 3,6 Km, numa cisterna transportada por um tractor. A operação tem por isso "um custo muito elevado", mas, tratando-se "de um ensaio", não poderia ser de outra forma, justifica Maria Manuel Poças, responsável pela produção vitícola da Poças.
"Isto é [ainda] uma experiência. Se correr bem, mais tarde, será necessário analisar a questão noutro prisma, perceber a viabilidade económica disto", refere Maria Manuel Poças, para quem o regadio com ApR deverá, no futuro, estar enquadrado numa "estratégia nacional". "Como é que se viabiliza o transporte de águas residuais até às vinhas? Eventualmente, será possível com o apoio do Estado e com financiamento comunitário. É preciso uma estratégia integrada para o regadio: sejam barragens para fim agrícola, sejam as ApR, seja eventualmente a dessalinização como complemento. Isso tem de passar por uma visão pública."
Para além da Poças e da Águas do Norte, que gere a ETAR, estão envolvidos neste piloto a Associação para o Desenvolvimento da Viticultura Duriense (ADVID), a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) e a Veolia Portugal.
Segundo comunicado da ADVID / Cluster da Vinha e do Vinho, enviado às redacções no Dia Nacional da Sustentabilidade, a instalação-piloto na vinha da Poças "entra agora na sua fase de arranque e ensaios preliminares" e é parte integrante do projecto REGADOURO, que este ano foi seleccionado pela Fundação "la Caixa” ao abrigo do programa “Promove. O futuro do interior” — em parceria com o BPI e a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), aquela fundação apoia a fundo perdido projectos-piloto inovadores que contribuam para o desenvolvimento das regiões do interior do país.
"Tendo em vista a promoção da eficiência ambiental e económica do sector", o projecto REGADOURO visa "aumentar o conhecimento sobre a reutilização de água tratada na rega" e "fomentar o aproveitamento dos nutrientes e fertilizantes presentes na mesma", lê-se na mesma nota. O acompanhamento científico da experiência na quinta da Poças no Douro Superior ficará a cargo da "UTAD, com o apoio técnico da ADVID e com a contribuição tecnológica da Veolia".
O projecto REGADOURO teve "um investimento total de 200 mil euros, comparticipado em 75% pela Fundação la Caixa", e o seu "prazo de execução é "até Outubro de 2025", partilhou Maria Manuel Poças com o Terroir.
Na Quinta de Vale de Cavalos, a parcela que agora é também regada com águas para reutilização já era irrigada "desde os anos 2000". "É uma parcela de Fernão Pires — onde ficam também as vinhas de Códega [do Larinho] e Arinto, de onde sai o nosso Branco da Ribeira — e era a única parcela que já regávamos na quinta, por isso, ali tínhamos condições para fazer esta experiência. O sistema de rega é gota a gota e temos seis bardos que são regados com água de furo, que tiramos do subsolo, 12 bardos dedicados à rega com ApR e uma parte da vinha sem rega, é a chamada testemunha [nos ensaios]", partilha a responsável pela produção vitícola da Poças.
Na nota de imprensa da ADVID, sublinha-se que "o sector agrícola é actualmente responsável por 70% dos consumos globais de água em Portugal" e recorda-se que, por conta da crise climática, "a escassez de água disponível anualmente tem tendência para se agravar".
"É uma questão de sobrevivência das videiras. Não é gastar água por gastar. Apesar de termos uma barragem ali ao lado, ela não é para fins agrícolas e há efectivamente um constrangimento de água. O solo é pobre e não chovendo no Inverno notamos que, de ano para ano, as videiras vão enfraquecendo", contextualiza Maria Manuel Poças, que ressalva ser uma "sorte" estar a quinta da empresa "em altitude". "Não é o Douro Superior junto ao rio. Não é tão extremo, mas com as alterações climáticas, pode vir a ser."
Em Portugal, a produção e a utilização de água para reutilização proveniente de ETAR estão regulamentadas desde 2019. E no Douro, uma das regiões que mais tem sofrido os efeitos da seca e da falta de água e onde, mais tarde ou mais cedo, aumentará a área de vinha irrigada, há "diversas ETAR" e muito próximas das vinhas, lembra a ADVID, que destaca o "enorme potencial de reutilização" das águas provenientes dessas infra-estruturas.
O estudo que se seguirá pretende demonstrar que essa "utilização é segura para as pessoas, para os solos, para as plantas e para o vinho". Noutros países produtores de vinho, como Israel ou Austrália, já se utilizam na viticultura águas residuais tratadas.
A ADVID tem vindo, de resto, a defender outras soluções para fazer face à falta de água, quando ela é cada vez mais necessária. Sensivelmente há um ano, a sua anterior directora técnica, Rosa Amador, em declarações ao Terroir, falava, por exemplo, no potencial de "infra-estruturas de armazenamento para as águas da chuva" que, instaladas "em locais estratégicos", pudessem "fazer uma distribuição da água por via da gravidade", poupando-se também aí no consumo de energia. "Guardar a água de Inverno, para poder usar na Primavera / Verão.” Algo que, na opinião de Rosa Amador, teria de passar por "investimento público".
"O início de uma ambição maior"
O projecto-piloto da parcela da Poças que fica junto à aldeia de Numão "constitui apenas o início de uma ambição maior", nota o presidente do conselho de administração da Águas do Norte, José Machado do Vale. Citado no comunicado da ADVID, o responsável sublinha que o Douro é um "território com 14 municípios, 44.000 hectares de vinha e 31 ETAR, muitas delas com grande proximidade às vinhas da região demarcada", e partilha o ambicioso "compromisso de atingir mais de 50% da respectiva água reutilizada na rega de vinhas”.
Neste mesmo dia 25 de Setembro, mas em 2015, a região aprovou a Agenda 2030. Entre os objectivos desse pacto estavam precisamente a minimização dos efeitos da seca e da escassez hídrica no território e a redução da carga de águas residuais rejeitadas em áreas sensíveis.
"O ganho dos conhecimentos técnico-científicos que este projecto possibilita, com grande aplicabilidade noutras regiões do país com características semelhantes, foi identificado como uma importante mais-valia na avaliação do projecto [pela Fundação "la Caixa"]. Para acelerar a acção climática de Portugal temos de ter cada vez mais projectos destes, capazes de fazer com que as regiões do interior se constituam como exemplos de resiliência e adaptação às alterações climáticas", comenta ainda o presidente da Águas do Norte.
O exemplo do Alentejo
No Alentejo, já existe outro projecto-piloto de reutilização de águas residuais tratadas na rega de vinhas. As vinhas são da Casa Relvas e as águas residuais chegam da ETAR de São Miguel de Machede. O piloto havia sido lançado logo em 2019, com a Águas de Portugal, mas o processo de licenciamento da obra que permitiu o encaminhamento directo da ETAR para a herdade do produtor alentejano só ficou terminado em Junho deste ano. No caso alentejano, são reutilizadas também as águas utilizadas na própria adega.
“A Casa Relvas iniciou em 2019 um projecto com as Águas de Portugal, no sentido de fechar o ciclo, ou seja, reutilizar o efluente produzido na sua adega, assim como o efluente de São Miguel de Machede, na rega das suas vinhas. Apesar de todo o esforço de poupança de água na adega e de uma viticultura de precisão, este contributo é crucial para uma boa gestão hídrica da cultura da vinha, podendo deste modo obter uvas de excelente qualidade", contextualizava, em Junho, Nuno Franco, director de viticultura e enologia da empresa e responsável pelo piloto. As licenças, explicava ainda, eram necessárias para o produtor "concluir o projecto", passando então a receber na barragem da herdade "80 metros cúbicos diários", encaminhados directamente pela ETAR local.
Notícia actualizada a 26/09/2023, às 16h59, com as declarações de Maria Manuel Poças.